quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Dos Processos Cautelares


1-Da Caracterização

Os processos cautelares, embora sejam autónomos, são acessórios de um processo principal ( Art. 113º/1 CPTA); são urgentes (Arts. 36º/1/e) e 113º/2 CPTA), pois são necessários para que o fim do processo principal não seja frustrado pela mera passagem do tempo; são baseados na prova sumária (Art. 114º/3/g)), devido à impracticablidade de realizar a recolha e análise da prova como no processo principal com a celeridade e urgência exigidas; são provisórios, na medida em que são instrumentais (Art. 123º CPTA), pois irão caducar sempre, quer seja ou não dada razão ao particular, e poderão ainda ser alteradas ou revogadas a qualquer altura (Art. 124º CPTA); e, por último, não poderão em caso algum corresponder à antecipação total da decisão final do processo, sendo que se o que o particular requer é a decisão imediata, é o processo principal que deve ser urgente, e não o processo cautelar.
Os processos cautelares são processos urgentes por força do Art. 36º/1/e) CPTA, e como tal são orientados pela vontade de impedir que a demora de um processo normal afecte gravemente os direitos e interesses do particular. No Contencioso Administrativo, têm as providências cautelares força constitucional, de acrodo com o Art. 238º/4 CRP.

2-Da Classificação

Não existe uma enumeração taxativa das providências cautelares que o particular pode requerer, sendo que esta dependerá de vários factores, como o direito ameaçado ou violado e as pretensões do particular.
No entanto, pode-se separar as providências cautelares em  não especificadas (Art. 112º CPTA) e em especificadas, compreendendo esta categoria as que se encontrão no Art. 112º/2 CPTA e no Art. 128º e seguintes CPC, mediante a remissão do Art. 112º/2 CPTA.
As providências cautelares podem ainda ser classificadas enquanto antecipatórias, quando se pretende a practica de um acto que beneficia o proponente da acção; e conservatórias, quando se pretende conservar o direito que já existe.

3-Dos Pressupostos

3.1-Da Competência
Pertence ao tribunal competente para julgar a acção principal (Art. 114º/2 CPTA), pelo facto de, embora constituam decisões independentes, a tramitação de um processo estar ligada à tramitação do outro.

3.2-Da Legitimidade Activa
Em termos gerais, e devido à relação de dependência entre os dois processos, tem-na quem tenha  legitimidade para intentar a acção principal concreta (Art. 112º/1 CPTA). Tem, portanto, de ser titular de um interesse na relação material controvertida.

3.3-Da Legitimidade Passiva
Será sempre relativa ao réu ou contraparte no processo principal.

3.4-Do Tempo
Objectivamente, não há prazo para requerer uma providência cautelar, mas isto não implica que possa ser proposta a qualquer altura. Pode ser proposta a todo o tempo enquanto corre o processo principal, mas, se este ainda não foi proposto, só pode ser proposto se o prazo de propositura do primeiro ainda não tiver passado.

3.5-Do Interesse em Agir
Embora os tribunais administrativos tenham, em regra, sido bastante magnânimos na aceitação deste pressuposto, este é entendido, em sentido estricto, enquanto uma carência de tutela cautelar.

Ficam assim expostos os principais pontos de caracterização dos processos cautelares enquanto figura jurídca administrativa.

Pedro Sacadura Botte
140111065

A legitimidade na acção administrativa comum no domínio contratual


No que à especificidade das regras relativas aos pressupostos processuais das acções comuns no domínio da contratação administrativa diz respeito, há que equacionar as questões de legitimidade trazidas à colação pelo artigo 40º do CPTA.

A lógica tradicional encarava a questão da legitimidade de uma óptica exclusivamente bipolar, interpretando de forma restritiva as disposições legislativas que se referiam às partes, e considerando apenas a intervenção judicial dos efectivos contratantes. Esta óptica bipolar estrita foi muito criticada tanto em razão dos respectivos fundamentos como dos resultados práticos a que chegava por parte de certos sectores da doutrina, com particular evidência pela professora Maria João Estorninho, que defendia antes o alargamento da legitimidade no domínio contratual a outros sujeitos lesados, quer na qualidade de terceiros, quer como sujeitos de relações multilaterais.

No entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, independentemente de estar em causa um contrato, um acto ou qualquer outra forma de exercício da actividade administrativa, sempre que os particulares sejam afectados por essa actuação e sejam merecedores de protecção jurídica, não são terceiros em face de uma relação jurídica estabelecida entre outros privados e a AP, mas sim partes de uma relação multilateral, que se considera existente e que abrange as autoridades administrativas, os privados que são destinatários da actuação administrativa, assim como aqueles que são por ela afectados.

O CPTA produz assim uma ruptura com esta perspectiva fechada de entendimento da legitimidade no contencioso contratual da AP, ao alargar os poderes de intervenção no processo não só aos intervenientes do contrato, mas a todos os interessados e até mesmo ao Ministério Público e ao actor popular (art.40º CPTA).

O Código começa por distinguir duas hipóteses: a dos pedidos relativos à interpretação e à validade dos contratos (art.40º/1) e a dos pedidos relativos à respectiva execução (art.40º/2).

No que respeita a pedidos relativos à validade, total ou parcial, dos contratos da função administrativa estabelecem-se as seguintes categorias de sujeitos dotados de legitimidade processual (art.40º/1 CPTA):

1.     Os contraentes;
2.    Todos os particulares susceptíveis de ser lesados nos respectivos direitos pela celebração do contrato;
3.     O Ministério Público;
4.     O actor popular; 
Consagra-se assim uma solução de alargamento da legitimidade a todos os particulares afectados nas suas posições jurídicas subjectivas pelo contrato, concretizando em matéria de contratos administrativos, o princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares (art.268º/4 CRP). Já não parece ser razoável a opção do legislador de alargar o universo de legitimidade para além da protecção jurídica subjectiva, nomeadamente através da acção popular, admitindo que, mesmo aqueles que não possuam “interesse pessoal na demanda” (art.9º/2 CPTA), possam intervir no contencioso relativo a um contrato da função administrativa. O que está em causa é uma actuação administrativa baseada num negócio jurídico bilateral, em que a produção de efeitos decorre da vontade das partes, e não perante uma relação decorrente de uma actuação unilateral da AP.

A própria noção de contrato parece ser incompatível com a lógica da abertura do processo a quem nada tenha a ver com tal relação jurídica, como é o caso do actor popular, pois não faz sentido considerar que os direitos constituídos pela via contratual são, simultaneamente, relativos e absolutos, decorrentes da vontades das partes e oponíveis erga omnes, integrantes de uma relação criada por sujeitos determinados mas aberta a toda a colectividade.

No que respeita aos pedidos relativos à execução dos contratos da função administrativa, o Código consagrou igualmente uma situação de ampliação da legitimidade (art.40º/2 CPTA), identificando categorias similares de sujeitos, a saber:

1.    os contraentes;
2.  os particulares lesados nos seus direitos pela execução do contrato, quer em razão do respectivo clausulado, quer por terem sido preteridos no procedimento prévio;
3. o Ministério Público, mas apenas quando estiver em causa um interesse público especialmente relevante;
4.    o actor popular; 
O legislador chega ao mesmo resultado de considerar que para além dos contraentes, gozam também de legitimidade outros particulares afectados pela relação contratual, assim como o actor público e o actor popular. Os critérios de aferição da legitimidade para o MP parecem contudo ser mais exigentes dos que o do actor popular, já que só se permite a intervenção do primeiro em caso de interesse público especialmente relevante, o que não se exige no segundo caso. Por um lado, os interesses de defesa da legalidade e do interesse público, que tanto o MP como o actor popular prosseguem, mediante o direito de acção em juízo, em geral, revestem-se sempre de especial relevância – pois, estão em causa valores e bens constitucionalmente protegidos como resulta do art.9º/2 CPTA -, não se percebendo porque é que em matéria de contratos tal relevância deveria ser ainda mais especial. Ainda mais tratando-se o primeiro de um organismo estadual, a quem está cometida a tarefa de zelar, a titulo institucional, pela defesa da legalidade e do interesse público (art.219º CRP).

Esta introdução não apenas implica um alargamento desmesurado da legitimidade, dado que admite a intervenção de quem não possua qualquer interesse pessoal na demanda, o que é contraditório com a natureza da relação contratual controvertida; como também regula esse alargamento objectivo de forma incorrecta pois ele deveria realizar-se antes através do mecanismo da acção pública e não do da acção popular.

Especifica do contencioso contratual é também a regra do pressuposto processual da oportunidade. Enquanto a acção administrativa comum, em geral, não está sujeita a qualquer prazo (art.41º/1 CPTA), já no que respeita à impugnação de contratos da função administrativa existe uma regra especial, segundo a qual os pedidos de anulação, total ou parcial, de contratos podem ser deduzidos no prazo de 6 meses contados da data da celebração do contrato, ou, quanto a terceiros, do conhecimento do seu clausulado (art.41º/2 CPTA). O fundamento da regra parece ser o da criação de um paralelismo entre a regulação aplicável à impugnação de actos e à impugnação de contratos, mas é duvidosa esta asserção, dado que as exigências de estabilidade e da tutela da confiança dos particulares, que justificam os prazos para reagir contra as actuações unilaterais, não se colocam da mesma maneira perante um negócio jurídico bilateral, em que a produção de efeitos decorre do próprio acordo de vontades entre as partes.

É necessário interpretar a previsão de tais prazos de forma restritiva, nomeadamente não a alargando aos pedidos de condenação, que devem poder ser propostos a todo o tempo, da mesma maneira que se deve considerar que aqueles não possuem qualquer efeito preclusivo do julgamento futuro das relações contratuais, aplicando aqui, por analogia, o regime previsto, no art.38º CPTA, sob pena de se estar a criar um regime de inimpugnabilidade mais gravoso para os contratos da função administrativa do que para os actos administrativos.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A causa de pedir enquanto objecto do processo

A doutrina clássica do contencioso tendia a considerar que o que relevava para a determinação da causa de pedir eram as alegações do autor referentes ao acto administrativo, nomeadamente quanto a saber qual o tipo de invalidade que fere o acto, orientação subjectiva defendida em Portugal quer pelo professor Marcello Caetano como pelo STA.

A orientação a tomar quanto à causa de pedir, primeiramente, deve depender da função e da natureza do Contencioso administrativo: um contencioso virado para a protecção jurídica subjectiva, pelo contrário, configura a causa da pedir na sua ligação com os direitos dos particulares; não é o acto administrativo que constitui o objecto do processo, mas sim o acto enquanto lesivo de direitos dos particulares – a causa de pedir é uma ilegalidade relativa porque relacionada com o direito subjectivo lesado, devendo ser entendida em conexão com as pretensões formuladas pelas partes, as quais, correspondem a direitos subjectivos dos particulares no caso da acção para defesa de interesses próprios, ou são, antes, um mero expediente formal para a tutela da legalidade e do interesse público num processo de partes como sucede com a acção pública e a acção popular.

Tal é o entendimento da causa de pedir constante do CPTA, não podendo o tribunal ocupar-se senão das questões suscitadas (95º n.º1). Regra que corresponde à consagração de um princípio geral do contraditório, ainda que temperado pela consagração de poderes inquisitórios do juiz. Por sua vez, o n.º 2 é norma especial para os processos impugnatórios de actos administrativos, o que é explicável pela manifestação do ‘velho trauma’ de só atribuir importância à questão da causa de pedir quando estão em causa actos administrativos.

Na primeira parte, estabelece-se que o tribunal se deve pronunciar sobre todas as causas de invalidade, excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito (95º2), com o objectivo de que o julgador aprecie a integralidade dos direitos alegados. Determinando-se o dever de conhecimento da integralidade da relação jurídica trazida a juízo, previne-se o surgimento de verdadeiros círculos viciosos, de sucessivas e infrutíferas apreciações jurisdicionais, numa dança contínua de anulações e renovações de actos administrativos, gravemente lesiva dos direitos dos particulares. A disposição contida na primeira parte do 95º2 não só não constitui uma excepção à regra geral como tem que ver com qualquer alargamento do objecto do processo para além das pretensões das partes, antes consagra um entendimento da causa de pedir em conexão com os direitos dos particulares. Na segunda parte do 95º2 determina-se que o tribunal deve identificar as causas de invalidade diversas. Surge o problema de saber qual a amplitude deste dever do juiz.

Do que se trata não é de introduzir factos novos mas sim de identificar ou individualizar ilegalidades dos actos administrativos, distintas das referenciados pelo autor, desde que elas resultem de alegações das partes, podendo o juiz qualificar diferentemente os factos alegados pelas partes. Uma coisa é dizer-se que o juiz está limitado à apreciação do acto na sua relacionação com o objecto na sua relacionação com o direito subjectivo outra coisa é dizer que o juiz se encontra obrigado a aceitar a qualificação jurídica.

Do ponto de vista processual, os vícios do acto administrativo eram vistos, pela doutrina e jurisprudência como uma forma de introduzir em juízo a causa de pedir num contencioso concebido em termos objectivos, constituindo portanto um expediente para aceder ao acto administrativo, tendo como pretexto as alegações dos particulares dotados de legitimidade processual, num controlo da actuação administrativa concebido em termos limitados. Desta maneira, os vícios do acto administrativo forneciam um álibi subjectivista para justificar um sistema de contencioso administrativo objectivista.
Numa palavra, a causa de pedir não está mais condicionada pela técnica dos vícios, nem tem de respeitar exclusivamente ao acto administrativo impugnado, sendo delimitada apenas em razão dos direitos alegados pelos particulares.

Para a acção pública e popular, está em causa a defesa da legalidade feita em termos de um processo de partes, não estando a causa de pedir condicionada pelo mecanismo dos vícios, devendo ser delimitada em razão dos factos e alegações trazidas a juízo.

É no sentido do afastamento de uma visão restritiva da causa de pedir correspondente à técnica dos vícios do acto administrativo que julgo correcta a afirmação do 95º-2, que tem em vista algo de qualitativamente distinto do mero exercício do poder de requalificação normativo dos argumentos invocados, que é inerente ao princípio iura novit cura. Está em causa a identificação, no episódio da vida que foi trazida a juízo, de ilegalidades diversas daquelas que foram identificados pelo autor.

O que está em causa é uma actuação administrativa lesiva de direitos, e não o acto administrativo através da construção de uma pretensão anulatória que é discutida em plenitude, o que conduziria ao entendimento de que todas as possíveis causas de invalidade de que padeça o acto impugnado integram a mesma causa de pedir pelo que a identificação, pelo tribunal, de qualquer delas não o afasta do objecto do processo, conforme entende o professor Mário Aroso de Almeida.

Do ponto de vista teórico, a construção da pretensão anulatória, ou do direito à anulação, é uma figura que não é só incapaz de abranger o universo das posições jurídicas substantivas dos particulares perante a Administração, como também obriga a distinguir os direitos subjectivos públicos, em razão, não da posição jurídica do respectivo titular mas do facto de se estar ou não perante um acto administrativo. A concepção do direito à anulação do acto administrativo, assumindo uma natureza formalmente subjectivista que acaba por conduzir, paradoxalmente ao resultado objectivista de considerar a causa de pedir como relativa à validade do acto administrativo, equivale a fazer do juiz uma parte no processo o que se afigura ser manifestamente inconstitucional.

Uma coisa é considerar que o MP é uma parte no processo administrativo e que por isso pode configurar as pretensões em juízo, formulando pedidos e carreando factos novos para o processo, outra coisa é admitir que o juiz que não é parte venha a fazer o mesmo, sem estar limitado pelo objecto do processo. No direito português haverá que distinguir entre a acção para defesa de direitos, em que a pretensão processual deduzida em juízo corresponde aos direitos subjectivos dos particulares, numa concreta relação jurídica, e a acção pública e a acção popular através das quais se processa a tutela directa da legalidade e do interesse público.


Assim, o nº2 do 95º não constitui uma excepção mas constitui a particularização dessa regra para os processos impugnatórios, tendo em contas as mudanças operadas pela reforma. O legislador é mesmo escrupuloso no respeito pelo principio do contraditório aí. Todas estas considerações acerca de um entendimento da causa de pedir, ampliado em relação à lógica tradicional e ao direito anterior mas determinado em razão das pretensões das partes, valem igualmente para os processos de impugnação de regulamentos.

O Contencioso Administrativo no divã da constituição

No quadro da realidade portuguesa, e olhando para o texto originário da CRP de 1976, é possivel vermos um compromisso entre princípios antagónicos. O legislador constituinte consagrou um compromisso entre princípios liberais e o caminho para o socialismo, que são duas vias manifestamente distintas.
Durante vários anos o legislador oscilou entre o novo contencioso administrativo -através da criação de direitos como o do acesso à justiça administrativa- e o velho contencioso, na medida em que o recurso que presente na constituição correspondia a lógica do sistema do ministro-juiz, em que se considera a administração e o tribunal como integrados no mesmo poder.
Logo depois da entrada em vigor da CRP um grupo de professores foi incumbido de elaborar uma lei que permitisse a compatibilização entre a realidade constitucional e a realidade administrativa, e a lógica do trabalho dessa comissão foi fazer um trabalho cirúrgico.
O trabalho realizado materializou-se no decreto lei de 1977, desse decreto é de enaltecer quatro pontos:

(i) Dever de fundamentação da administração: importante do ponto de vista procedimental e do ponto de vista administrativo. Normalmente é por aqui que os particulares percebem se a AP está a cumprir com os seus deveres. VPS considera que o dever de fundamentação é um direito fundamental do particular.
(ii) Curiosamente foi estabelecido na lei e na revisão constitucional de 82 vai ser estabelecido na CRP e o legislador estabeleceu ainda um mecanismo de dar possibilidade ao autor do acto de o rever num determinado prazo de tempo.
(iii) Primeira tentativa ainda que limitada de pôr em causa o acto tácito indeferido. O fingimento de que o nada dizer da AP correspondia a um indeferimento do pedido do particular era levado demasiado a serio no quadro do direito português. O que estava em causa era mostrar que aquele chamado indeferimento tácito era um mero expedimento processual destinado a abrir a porta do contencioso mas que não teria qualquer utilidade.
(iiii) Regulação da execução das sentenças dos tribunais administrativos. Isto continua a ser algo difícil de fazer porque ainda ha uma reacção natural dos órgãos de topo do Governo. O 256ºA estabeleceu a responsabilidade civil, disciplinar e penal. Estes mecanismos mostraram-se adequados para acabar com esse fenómeno do incumprimento das sentenças. Hoje em dia pode-se dizer que de alguma maneira o problema crónico do contencioso administrativo das sentenças não executadas já melhorou bastante. Os casos de inexecução de sentenças em Portugal hoje são casos em que o particular se conformou com isso.

As alterações foram, de facto, importantes, mas pecaram por defeito na medida que foram as únicas, pelo que houve problemas que subsistiram durante muito mais tempo e a lógica continuou a ser a do velho contencioso administrativo.
Em 1982 existiu uma nova revisão constitucional e assistiu-se novamente a uma pequena alteração do contencioso: Por um lado alterou-se a lógica do recurso de anulação, por outro, criou-se um novo meio de defesa. Esta reforma alterou o recurso de anulação porque pela primeira vez estabeleceu o recurso como um processo de parte.

O legislador diz hoje na CRP que o objecto do contencioso administrativo é resolver os litígios que decorrem das relações jurídicas administrativas. A norma do 212º/3 veio introduzir uma alteração importante no quadro da justiça administrativa e do âmbito da justiça administrativa, criando se uma verdadeira institucionalização do contencioso. No 268º/3 e 4 o direito fundamental à justiça administrativa fica divido em dois direitos fundamentais: direito fundamental à impugnação de actos e direito fundamental a outros meios contencioso não de impugnação .

No que se refere à impugnação esse processo agora incide sobre actos lesivos dos particulares,isto significa não apenas deitar fora a ideia de acto definitivo e executório mas também dizer que os direitos dos particulares são o objecto do contencioso e é com base nisso que o tribunal vai apreciar a questão. Esta dimensão subjectiva do processo significa, do ponto de vista objectivo, que a AP vai ser obrigada a cumprir todos os seus deveres.
Todas as tentativas de reforma que surgiram até 2002 foram condenadas ao fracasso.O legislador de 97 resolveu dar o sinal de que as coisas não podiam ser assim. Era absolutamente imprescindível haver uma reforma do Contencioso Administrativo. Aquilo que vai resultar de 97 corresponde a uma revolução coperniana do contencioso administrativo. Em vez de se pensar nos meios processuais o legislador agora pensava na tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares. Isto vai dar origem ao actual art. 268º/4 CRP: O novo princípio e fundamento do contencioso é a tutela dos direitos.
Entre 1997 e 2004 agrava-se a omissão. O Governo apresentou três propostas de lei correspondentes a três diplomas que estavam em cima da mesa: o código de processo dos tribunais administrativos, o estatuto dos tribunais administrativos e um diploma sobre responsabilidade civil das entidades públicas.

Houve coisas que ficaram por fazer e foi pena que não se tenham feito. O balanço da reforma é positivo no que corresponde ao código de processo e menos positivo no que corresponde ao estatuto dos tribunais administrativos. O código de processo corresponde aos objectivos constitucionais. O estatuto tem apenas uma coisa boa - o art. 4º,que corresponde a uma norma aberta de limitação da jurisdição administrativa.


A esquizofrenia no contencioso administrativo contratual

Resultante da evolução de uma noção processual do conceito de contrato público para a sua substantizavação, surge toda uma doutrina da contratação administrativa marcada pela fragmentação da “imagem do corpo”: procura-se, por um lado, justificar a divisão esquizofrénica do universo contratual, distinguindo os contratos administrativos dos contratos de direito privado da Administração, considerando aqueles como correspondentes ao exercício de privilégios exorbitantes ou de poderes especiais da Administração, que exigiam um específico regime jurídico e os estes como simples contratos em que as autoridades administrativas actuavam como simples privado, sendo o seu regime jurídico idêntico ao de qualquer outro contrato. A própria noção de contrato administrativo é vista como um acordo de vontade, como um negócio jurídico bilateral, celebrado entre a Administração e os particulares, e como o exercício dos poderes unilaterais exorbitantes ou autoritários por parte das autoridades públicas.

O contrato administrativo é, pois, um conceito bifronte que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral, consenso de vontades e supremacia de uma parte em face da outra, instrumento de cooperação e mecanismo de sujeição. A separação esquizofrénica entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração tinha consequências de natureza substantiva e processual, considerando-se, do ponto de vista substantivo, exigível a existência de um regime jurídico especial para os contratos administrativos, e um comum aos demais contratos em que interviessem a Administração.

A distinção entre contratos administrativos e os demais proceder-se-ia em razão de critérios autoritários, decorrendo dessa autoridade poderes especiais para a Administração, quer ao nível da interpretação do contrato, quer ao nível da respectiva execução. Do ponto de vista contencioso, a natureza do contrato administrativo implicava que os litígios relativos à sua interpretação, validade ou execução fossem da competência dos tribunais administrativos, enquanto que os contratos de direito privado da Administração eram da competência dos tribunais comuns.

De acordo com a professora Maria João Estorninho, encontra-se cada vez mais generalizada utilização de formas contratuais pela Administração enquanto modo normal de exercício da função, ao lado de uma multiplicidade de outras formas de actuação, o que vai dar origem a um movimento de sentido convergente, através do qual se tem vindo a reconhecer que nem o contrato administrativo é tão exorbitante quanto isso, nem os contratos privados da Administração são exactamente iguais aos celebrados entre particulares, reflectindo desde logo uma eventual aproximação entre todos os contratos da administração. A unidade é então propulsionada não só pela doutrina, como também pelo Direito Europeu, que defende através da construção de um espaço comunitário a existência de regras comuns em matéria de contratação administrativa, resultando daqui o surgimento de múltiplas fontes de Direito Administrativo Europeu, que encontra nas directivas a sua maior Fonte de Direito

No Direito Interno em exclusivo, o CPA regula o contencioso pré-contratual enquanto processo urgente por força dos artigos 100º e ss, para além de consagrar um contencioso de plena jurisdição respeitante aos litígios emergentes das relações contratuais administrativas, seja pela via da acção comum, seja da especial.

A criação de um verdadeiro Direito Europeu de Contratação Pública estabelece as bases gerais dos contratos da função administrativa em todos os países da Europa, tratando-se de um regime jurídico comum europeu, estabelecido para certos tipos de contratos, em razão da sua importância para o exercício da função administrativa e independentemente da respectiva qualificação nacional ou para determinados sectores da actividade, em razão dos fins prosseguidos de modo a poder valer tanto para os ordenamentos dos países de matriz francesa, como os de variante germânica ou ainda para os da “common law”, o que explica que a matéria da contratação pública europeia seja delimitada, sobretudo, com base em critérios materiais relativos à natureza da actividade bem como aos fins prosseguidos.

Para além desta “integração vertical”, decorrente da aplicabilidade das fontes comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada um dos Estados europeus, verifica-se ainda, conforme defende o professor Sabino Cassese, um fenómeno de “integração horizontal”, que consiste na convergência das administrações e das instituições nacionais, pois, a partir do momento em que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que tendam também a convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o direito dos contratos das administrações públicas dos diferentes Estados tenda a convergir para um modelo unitário, afirmando-se por isso que existe cada vez mais uma tendência para a unidade dos contratos que correspondem ao exercício da função administrativa, quer do ponto de vista do direito substantivo, como do procedimental ou processual.

O fenómeno da europeização em Portugal tem sido um importante eixo da transformação do Direito Administrativo português da contratação pública. O movimento unificador da contratação pública ditado pelo Direito Europeu, manifestou-se primeiro na legislação relativa aos procedimentos pré-contratuais e, depois, na legislação do contencioso administrativo, que eliminou, para efeitos processuais, a categoria dos contratos administrativos (artigo 4º, nº1 alínea b), e) e f) do CPTA).


O actual do Código da Contratação Pública (DL nº18/2008 de 29 de Janeiro) trata-se de um meio-termo entre a adopção de um conceito genérico de contrato público, em sentido europeu, e a manutenção da dualidade esquizofrénica originária, estabelecendo o legislado, por um lado (e de forma pioneira no Direito Administrativo nacional), uma disciplina geral completa de todos os contratos em que intervém a administração, ao mesmo tempo que uniformiza e simplifica a tipologia e a tramitação dos procedimentos pré-contratuais e racionaliza o regime material a contratação pública. Por outro lado, o CCP persiste em manter a dualidade conceptual esquizofrénica entre contratos administrativos e outros contratos de administração (artigo 1º, nº1 do CCP), mesmo se a definição do dito contrato administrativo (artigo 1º, nº6) fornece argumentos para o esbatimento das fronteiras conceptuais ao nível da totalidade da contratação pública, assim como alarga o respectivo âmbito, que passa a incluir os contratos de aquisição de locação de bens e aquisição de bens móveis e serviços (artigos 431º, 437º, 450º do CCP).