segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Acontecimentos traumáticos da infância difícil do Contencioso Administrativo

Tal como nas pessoas, em que os traumas de infância têm repercussões no desenvolvimento de determinadas patologias na idade adulta, também no Contencioso Administrativo conseguimos identificar, ainda hoje, requícios de uma infância traumática e difícil, marcada essencialmente por dois acontecimentos. 

O primeiro acontecimento traumático tem a ver com as próprias circunstâncias do surgimento do Contencioso Administrativo, que nasceu em 1789 com a Revolução Francesa onde os tribunais comuns ficaram proibidos de controlar a administração. 
O aforismo da revolução francesa foi o aforismo segundo o qual julgar a administração é ainda administrar. Isto significava que os revolucionários estavam a fazer uma coisa e a afirmar outra. O princípio da separação de poderes era defendido como sendo o grande valor do liberalismo e os liberais, ao mesmo tempo que proclamavam isto, faziam inconscientemente o contrário. Estabeleceram, nas palavras do professor Vasco Pereira da Silva, a promiscuidade entre administração e justiça.
A história do liberalismo é uma recordação de cobertura: os liberais enquanto afirmavam uma coisa, praticavam o oposto. Há autores que dizem que se trata de uma versão diferente da separação de poderes. Mas a verdade é que ao afirmar-se isto está-se a não querer reconhecer aquilo que efectivamente acontecia, a ignorar o óbvio. O contencioso administrativo nasce, assim, de um trauma que os seus próprios autores procuram esconder. 

Para além disso é preciso descobrir porque é que surgiu esta recordação de cobertura. O que incomodava era o medo do papel dos tribunais e a ideia de que a administração se devia ocupar não apenas das questões de actuação mas também do seu próprio controlo e julgamento. Um contencioso que não existiria para realizar o direito e a justiça, para tutelar os direitos dos particulares mas simplesmente para proteger a Administração Pública.

Se repararmos, em Portugal só com a Constituição de 1976 é que os tribunais administrativos foram integrados no sistema judicial. Antes disso estavam submetidos ao poder hierárquico do Primeiro Ministro. A justiça administrativa estava integrada no poder administrativo no exercício de uma função jurisdicional. Era um órgão especial dentro da Administração. 

Esse trauma ainda se manteve até à reforma de 2004, porque só aí o juiz administrativo passou a ter todos os poderes de um juiz. Passou a poder condenar a administração, o que até aí só podia fazer no domínio dos contratos e da responsabilidade civil. Dizia-se que dar ordens à administração seria uma violação do princípio da separação de poderes.
Este é um trauma profundo que continua a precisar de análise porque ainda havia, em 2004 limitações aos poderes do juiz, tal como na reforma de que agora se fala. 

Para além deste há, mais ou menos em simultâneo, um outro trauma que tem a ver com o surgimento não apenas do Contencioso como também do Direito Administrativo. Este trauma vai dar origem ao Acórdão Blanco de 1873 emitido pelo tribunal de conflitos francês e que, segundo a doutrina francesa, é uma espécie de registo de nascimento do Direito Administrativo. 

O episódio triste que está na base deste acórdão vai gerar também uma sentença que é triste, na perspectiva do professor Vasco Pereira da Silva.

A história é simples: é a história de uma criança que foi atropelada por um vagão de uma empresa pública que descarrilou. As circunstâncias excepcionais do acidente levaram a que a criança tivesse danos gravíssimos. Os pais foram ao tribunal de Bordéus pedir uma indemnização e o tribunal disse duas coisas. Em primeiro lugar disse que não era competente porque não se tratava de uma empresa privada, acrescentando ainda que não existia norma aplicável àquele caso. Se nos situarmos no positivismo jurídico puro e duro do século XIX, sabemos que o Côde de Napoleão apenas regulava relações entre particulares e não situações como esta. Houve, então, intervenção da primeira instância (Presidente da Câmara) que vem dizer exactamente o mesmo. O conselho de Estado não chega a pronunciar-se mas há uma intervenção do tribunal de conflitos que vem dizer que a jurisdição administrativa era competente. O tribunal de conflitos vai, contudo, adoptar o argumento das outras jurisdições dizendo que não havia direito aplicável ao caso, e que, por isso mesmo era preciso que a jurisdição administrativa criasse um estatuto especial para a administração. 

Este episódio triste e esta sentença igualmente triste pode ser apontado como o segundo grande trauma do direito administrativo. Estamos a falar de um ramo de direito novo que surgiu para proteger a administração (contra os pais de uma criança que faleceu atropelada por um vagão de uma empresa pública).
Isto é algo que desta perspectiva significa uma tomada de posição da jurisprudência no sentido de considerar que a função do Direito Administrativo é proteger a Administração. É uma lógica autoritária e que está ligada a uma visão liberal, por muito incrível que pareça.

Estes dois traumas ajudam-nos a entender o modo como surgiu e foi evoluindo o Contencioso Administrativo. Este Contencioso nasceu, assim, marcado por estas duas dimensões: por um lado de violação do princípio da separação de poderes; por outro lado, pela lógica de protecção da administração contra os particulares.

Em Portugal é preciso esperar por 2004 para que se resolvesse o problema do tribunal competente em matéria de acidentes de viação. Antes disso distinguia-se entre os actos de gestão pública (regulados pelo Direito Administrativo) e actos da administração de gestão privada (regulados pelo Direito Civil). A jurisprudência dizia que era preciso apurar no caso concreto se havia uma relação de serviço entre a actuação do órgão da administração ou não. O que, como facilmente intuímos, criava situações de grande indeterminação.
Em 2004 passou a ser sempre competente a justiça administrativa mas ainda se geraram dúvidas nas situações em que há conculpabilidade. Os juízes nestes casos vieram dizer que o melhor seria enviar para os tribunais comuns porque havia dúvidas quanto à competência do tribunal. 
Mesmo quando, em 2008, surgiu uma nova lei de responsabilidade civil, ainda houve quem dissesse (nomeadamente o professor Marcelo Rebelo de Sousa) que continuava a existir essa distinção na letra da lei, o que significaria que se poderia colocar num acidente de viação em que interviesse um automóvel no exercício da função pública um problema semelhante ao do Acórdão Blanco. 

É, assim, importante termos a psicanálise em dia, uma vez que os traumas que parecem ser de uma infância longínqua continuam, ainda hoje, a marcar o nosso Contencioso Administrativo. 

Rita Pereira de Abreu
140111082

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