sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O artigo 95º e os traumas da infância difícil do Contencioso Administrativo

A noção de causa de pedir é uma das questões muito marcadas pelos traumas da infância difícil do Contencioso Administrativo.

Em termos abstractos, a opção que se tome quanto à noção de causa de pedir deve depender da função e natureza do Contencioso Administrativo.

Assim, uma orientação objectivista da justiça administrativa, que pretende controlar o exercício do poder administrativo, diria que a causa de pedir inclui a consideração de validade ou invalidade do acto administrativo, independentemente das alegações dos particulares relativas aos seus interesses materiais lesados.

No lado oposto, um Contencioso Administrativo de índole mais subjectivista “configura a causa de pedir na sua ligação com os direitos dos particulares. Não é o acto administrativo, na sua globalidade, que constitui o objecto do processo, mas sim o acto enquanto lesivo de direitos dos particulares, e que foi trazido a processo através das suas pretensões”. Assim, a causa de pedir é uma ilegalidade relacionada com o direito subjectivo do lesado, e não independente dele. Este é um processo de partes e está delimitado por aquilo que o particular leva a juízo.

O princípio essencial é o de que só o que é levado a juízo o tribunal tem de decidir. Tudo o que não for levado a juízo o tribunal não tem de decidir. Além disso o juiz deve tratar todas as questões. Aqui a questão é particularmente relevante porque no Contencioso Administrativo o juiz ter decidido com base numa das causas de pedir justifica sem mais a ilegalidade do acto. O juiz produziria uma sentença com efeitos úteis se só enunciasse uma das causas de pedir trazidas pelo particular. Esta norma por um lado introduz um princípio acusatório, por outro introduz esta dimensão de que o juiz tem de apreciar integralmente todas as causas do processo.

A polémica nesta matéria gera-se em torno da segunda parte do nº 2 do artigo 95º do CPTA.

No entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, o que a norma deste artigo consagra é o dever de o juiz “identificar” ou “individualizar” ilegalidades dos actos administrativos distintas das trazidas pelo autor, desde que estas resultem ou possam vir a resultar das alegações das partes que introduziram os factos em juízo.

Isto significa, desde logo, que o juiz pode qualificar diferentemente os factos alegados pelas partes. Mas significa mais. Importa ainda um alargamento dos poderes do juiz, no que respeita ao conhecimento do objecto do processo, possibilitando a apreciação dos direitos dos particulares directamente, bem como dos factos causadores da respectiva lesão.

O professor Vieira de Andrade, seguindo uma concepção objectivista, entende que “a questão principal a resolver no processo é, em qualquer caso, nos termos da lei, a da “ilegalidade” (ilegitimidade jurídica) do acto impugnado e não necessariamente a da lesão de um direito substantivo do particular que pode nem existir no caso.”

Deste entendimento resulta a interpretação do artigo 95º/2 de acordo com a qual o juiz, para além de conhecer de todos os factos invocados pelo autor, deverá também averiguar de modo oficioso a existência de ilegalidades do acto impugnado, em derrogação ao princípio da limitação do juiz à causa de pedir. Assim, o juiz poderia alegar factos novos na medida que esses factos integrassem a lesão que o particular sofreu, o ilícito que o particular sofreu.

Ora, como afirma o professor Vasco Pereira da Silva, isto introduz uma complicação absolutamente desnecessária para a questão que está aqui em jogo.

Em primeiro lugar, a ideia do direito reactivo traduz a confusão entre relação jurídica processual e relação jurídica substantiva. Desde logo, esta é uma construção inadequada do ponto de vista teórico.

Acresce que aplicar esta construção a esta norma conduz a resultados que não são admissíveis porque o que o preceito preconiza é que o juiz deve identificar os factos alegados pelas partes e não ir à procura de factos novos. De facto, quando o legislador afirma que o juiz deve identificar a existência de causas de invalidade diversas, está a seguir a ideia de que o juiz pode e deve detectar as qualificações erradas elaboradas pelas partes, na medida que o particular tenha alegado os vícios do acto administrativo. Isto significa que o juiz não tem de se ater apenas à qualificação dos vícios tal como o particular os identifica, mas deve identificar esses factos e qualificá-los da maneira que entender mais adequada.

Em suma, o problema que aqui se coloca é o de saber o que significa esta identificação das causas de invalidade diversas das alegadas.

O melhor entendimento vai no sentido de considerar que isto significa unicamente a correcção da causa de pedir e do pedido, da qualificação que o particular fez, e que o juiz não está limitado pela qualificação dada pela parte, podendo estabelecer juízos valorativos diferentes, com o limite dos factos trazidos a juízo.


O que a jurisprudência tem feito é assumir uma posição que não é reconduzível a nenhuma das duas opções anteriormente apresentadas, entendendo que o juiz pode trazer factos novos desde que alegados pelas partes.

Rita Pereira de Abreu
140111082

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