sábado, 4 de outubro de 2014

BREVE EXCURSO SOBRE A EVOLUÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO PORTUGUÊS

 As experiências traumáticas que rodearam o nascimento do Contencioso foram importadas para o caso português, havendo também em Portugal uma fase do “Pecado Original”, que aliás se prolongou até muito mais tarde do que em França.
Em 1832, o Decreto 23, de Mouzinho da Silveira, veio proibir os tribunais de julgarem a Administração e instituir os Conselhos de Prefeitura e o Conselho de Estado (embora este último apenas como órgão político).
Entre 1832 e 1933, viveu-se um período de instabilidade quanto ao modelo de controlo jurisdicional da Administração, verificando-se uma oscilação entre a atribuição da resolução dos litígios a órgãos administrativos especiais ou aos tribunais comuns.
Com a Constituição de 1933, manteve-se a lógica da justiça delegada, já que os tribunais administrativos eram configurados como órgãos da Administração, embora no exercício da função jurisdicional. Este entendimento derivava do facto de os tribunais administrativos se integrarem na Administração, dependendo organicamente da Presidência do Conselho de Ministros, de os juízes dos tribunais administrativos dependerem funcionalmente do Governo, a quem cabia a respectiva nomeação e demissão e, por último, da inexistência de mecanismos jurisdicionalizados de execução de sentenças, que fazia com o que o seu cumprimento fosse considerado um poder gracioso da Administração que tinha nas suas mãos o poder de transformar as decisões em meros pareceres, não as executando, nem havendo possibilidade de instaurar um processo executivo!
Se estávamos perante um sistema de justiça delegada, então o sistema do administrador-juiz estava em vigor: a justificação dos poderes decisórios dos Tribunais era a figura da delegação de poderes  e não a atribuição de poderes próprios de julgamento e, para além disso, impunha-se o recurso hierárquico necessário (o particular lesado impugnava a decisão administrativa perante o ministro competente e só depois é que podia recorrer para os tribunais), uma vez que o meio para contestar os actos administrativos era o recurso directo de anulação.
Assim, o trauma da ligação originária a um modelo de contencioso dependente da Administração reflectiu-se em Portugal, porque também aqui havia um “juiz doméstico”, na expressão de MARIO NIGRO, e o Contencioso destinava-se a garantir a defesa dos poderes públicos e não dos direitos dos particulares.
A noção autoritária de “acto administrativo e executório” vigorou também em Portugal, continuando a ser usada pelo Professor MARCELLO CAETANO, tendo-se mantido mesmo após a Constituição de 1976. Esta noção só foi afastada em 1989 do texto constitucional e só em 2004 foi retirada da legislação processual.
Portugal conheceu a fase do baptismo muito mais tarde do que a generalidade dos países europeus, uma vez que a jurisdicionalização do contencioso administrativo ocorreu em simultâneo com a fase da confirmação. A jurisdicionalização dos tribunais administrativos só surge com a CRP de 1976 (art.º 212º) e é realizada em simultâneo com o reconhecimento de direitos dos particulares no âmbito do Contencioso, estabelecendo um direito fundamental de acesso à justiça administrativa (art.º 268º).
No entanto, este modelo constitucional de justiça administrativa, até há bem pouco tempo, não tinha encontrado adequada concretização legislativa nem jurisprudencial, levando o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA a questionar, com razão, se o Contencioso em Portugal, é direito constitucional concretizado ou ainda por concretizar?
Para além disso, a ideia de compromisso patente na Constituição de 1976 também se reflectiu no contencioso administrativo, porque muito embora tenha havido os progressos acima enunciados, o direito de acesso à justiça administrativa era fomulado como um direito de acesso ao recurso contencioso de anulação, ou seja, o juiz continuava a não ter plenitude de poderes e era um recurso desenhado contra actos definitivos e executórios, numa lógica anacrónica, uma vez que não é a Administração que define o Direito e não há nenhum privilégio de execução prévia (a execução só é possível nos termos da lei, não é um privilégio, e não é aplicável a muitos actos, como por exemplo, os actos favoráveis).
Até 2004, houve assim um desfasamento entre modelo constitucional e o contencioso, uma vez que os desafios criados pelo legislador constituinte só foram parcialmente realizados, numa lógica minimalista.
A Reforma de 1977 veio introduzir apenas algumas alterações: exigência do dever de fundamentação, os actos de indeferimento tácito em caso de omissão da Administração de forma a permitir ao particular ir a juízo e possibilidade de execução das sentenças dos tribunais administrativos (art.º 265º-A) através da cominação de responsabilidade civil, disciplinar e penal de todos os que as incumprirem.
A Revisão Constitucional de 1882 alterou ligeiramente o compromisso inicial, acrescentando uma dimensão subjectiva ao Contencioso ao falar do direito de recurso contencioso “para protecção dos direitos dos particulares”.
Em 1985, alterou-se o recurso de anulação e pela primeira vez estabeleceu-se o recurso como um processo de partes, dando igualdade de posições ao particular e à administração e criaram-se outros meios processuais: a declaração de ilegalidade de regulamentos administrativos, a acção para o reconhecimento de direitos e a intimação para comportamento. No entanto, foi, mais uma vez, uma reforma falhada, porque não quis regular todo o Contencioso, mantendo o que estava em vigor, criando, nas palavras do Professor SÉRVULO CORREIA, uma verdadeira “manta de retalhos”.
A Revisão Constitucional de 1989 implicou uma radical transformação do compromisso constitucional no sentido da acentuação da respectiva jurisdicionalização e subjectivação. Desdobrou-se a garantia constitucional de acesso à justiça administrativa em dois direitos fundamentais: um relativo ao recurso de anulação (art.º 268º nº4) e outro referente a todos os demais meios processuais (art.º 268º nº 3). Deles resultou a consagração de um princípio constitucional de protecção jurisdicional plena e efectiva dos particulares, abandonando a noção autoritária de acto definitivo e executório e colocando a tónica na protecção jurídica e subjectiva – a Constituição abandonou a cláusula restritiva actos definitivos e executórios, para passar a aferir a recorribilidade em razão do critério da lesão dos direitos dos particulares.
Contudo, como já enunciado, até ao final do século XX, vivia-se numa situação juridicamente insustentável de discrepância entre o texto e a prática constitucional no que respeitava ao Contencioso Administrativo.
Só em 2004 se resolveu esta discrepância. Até aí havia um problema de jurisdição em caso de acidentes de viação. Se, por exemplo, o carro do ministro da justiça embatia contra uma criança, se o ministro fosse dentro do carro era uma relação especial de serviço público, porque este podia dar ordens ao motorista e, por isso, era da competência dos tribunais administrativos, se não fosse era caso de gestão privada submetida aos tribunais comuns, regulado pelo direito civil. Não havia qualquer razoabilidade nesta distinção e tornava o processo longo, porque primeiro tinha que se decidir qual a jurisdição competente e só depois se iniciava o julgamento! Em 2004, vem estabelecer-se que é sempre competente a justiça administrativa, a lei ordinária consagrou expressamente a possibilidade de os tribunais condenarem a administração à adopção de condutas legalmente devidas, deixámos de ter uma lógica de recurso, para passar a ser verdeiro juiz, sendo que a primeira apreciação jurisdicional do acto administrativo é a acção, aceitando-se todos os meios de prova, passando haver audiência de julgamento, contraditório em audiência, … Para além disso, o legislador acabou com o acto de indeferimento tácito, prevendo a acção de condenação por omissão.
No entanto, o trauma da infância difícil não deixa de chegar aos nossos dias, uma vez que ainda hoje os actos do Primeiro-Ministro não são julgados nos tribunais administrativos de primeira instância, mas sim no Supremo Tribunal Administrativo, embora por razões protocolares.

Inês Chorro - 140111062 

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