As experiências traumáticas que rodearam
o nascimento do Contencioso foram importadas para o caso português, havendo
também em Portugal uma fase do “Pecado Original”, que aliás se prolongou até
muito mais tarde do que em França.
Em 1832, o Decreto 23, de Mouzinho da
Silveira, veio proibir os tribunais de julgarem a Administração e instituir os
Conselhos de Prefeitura e o Conselho de Estado (embora este último apenas como órgão
político).
Entre 1832 e 1933, viveu-se um período de
instabilidade quanto ao modelo de controlo jurisdicional da Administração,
verificando-se uma oscilação entre a atribuição da resolução dos litígios a
órgãos administrativos especiais ou aos tribunais comuns.
Com a Constituição de 1933, manteve-se a
lógica da justiça delegada, já que os
tribunais administrativos eram configurados como órgãos da Administração,
embora no exercício da função jurisdicional. Este entendimento derivava do
facto de os tribunais administrativos se integrarem na Administração,
dependendo organicamente da Presidência do Conselho de Ministros, de os juízes
dos tribunais administrativos dependerem funcionalmente do Governo, a quem
cabia a respectiva nomeação e demissão e, por último, da inexistência de
mecanismos jurisdicionalizados de execução de sentenças, que fazia com o que o
seu cumprimento fosse considerado um poder gracioso da Administração que tinha nas
suas mãos o poder de transformar as decisões em meros pareceres, não as
executando, nem havendo possibilidade de instaurar um processo executivo!
Se
estávamos perante um sistema de justiça delegada, então o sistema do
administrador-juiz estava em vigor: a justificação dos poderes decisórios dos
Tribunais era a figura da delegação de poderes e não a atribuição de poderes próprios de
julgamento e, para além disso, impunha-se o recurso hierárquico necessário (o particular lesado impugnava a decisão
administrativa perante o ministro competente e só depois é que podia recorrer
para os tribunais), uma vez que o meio para contestar os actos administrativos era o
recurso directo de anulação.
Assim, o trauma da ligação originária a
um modelo de contencioso dependente da Administração reflectiu-se em Portugal,
porque também aqui havia um “juiz doméstico”, na expressão de MARIO NIGRO, e o
Contencioso destinava-se a garantir a defesa dos poderes públicos e não dos
direitos dos particulares.
A noção autoritária de “acto
administrativo e executório” vigorou também em Portugal, continuando a ser
usada pelo Professor MARCELLO CAETANO, tendo-se mantido mesmo após a
Constituição de 1976. Esta noção só foi afastada em 1989 do texto
constitucional e só em 2004 foi retirada da legislação processual.
Portugal conheceu a fase do baptismo muito mais tarde do que a
generalidade dos países europeus, uma vez que a jurisdicionalização do
contencioso administrativo ocorreu em simultâneo com a fase da confirmação. A
jurisdicionalização dos tribunais administrativos só surge com a CRP de 1976
(art.º 212º) e é realizada em simultâneo com o reconhecimento de direitos dos
particulares no âmbito do Contencioso, estabelecendo um direito fundamental de
acesso à justiça administrativa (art.º 268º).
No
entanto, este modelo constitucional de justiça administrativa, até há bem pouco
tempo, não tinha encontrado adequada concretização legislativa nem
jurisprudencial, levando o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA a questionar, com
razão, se o Contencioso em Portugal, é
direito constitucional concretizado ou ainda por concretizar?
Para
além disso, a ideia de compromisso patente na Constituição de 1976 também se
reflectiu no contencioso administrativo, porque muito embora tenha havido os
progressos acima enunciados, o direito de acesso à justiça administrativa era
fomulado como um direito de acesso ao recurso contencioso de anulação, ou seja,
o juiz continuava a não ter plenitude de poderes e era um recurso desenhado contra
actos definitivos e executórios, numa lógica anacrónica, uma vez que não é a
Administração que define o Direito e não há nenhum privilégio de execução
prévia (a
execução só é possível nos termos da lei, não é um privilégio, e não é aplicável
a muitos actos, como por exemplo, os actos favoráveis).
Até
2004, houve assim um desfasamento entre modelo constitucional e o
contencioso, uma vez que os desafios criados pelo legislador constituinte só
foram parcialmente realizados, numa lógica minimalista.
A Reforma de 1977 veio introduzir apenas algumas alterações: exigência do
dever de fundamentação, os actos de indeferimento tácito em caso de omissão da
Administração de forma a permitir ao particular ir a juízo e possibilidade de execução
das sentenças dos tribunais administrativos (art.º 265º-A) através da cominação
de responsabilidade civil, disciplinar e penal de todos os que as incumprirem.
A Revisão Constitucional de 1882 alterou ligeiramente o compromisso
inicial, acrescentando uma dimensão subjectiva ao Contencioso ao falar do
direito de recurso contencioso “para protecção dos direitos dos particulares”.
Em 1985, alterou-se o recurso de anulação e pela primeira vez
estabeleceu-se o recurso como um processo de partes, dando igualdade de posições
ao particular e à administração e criaram-se outros meios processuais: a
declaração de ilegalidade de regulamentos administrativos, a acção para o
reconhecimento de direitos e a intimação para comportamento. No entanto, foi, mais
uma vez, uma reforma falhada, porque não quis regular todo o Contencioso,
mantendo o que estava em vigor, criando, nas palavras do Professor SÉRVULO
CORREIA, uma verdadeira “manta de retalhos”.
A Revisão Constitucional de 1989 implicou uma radical transformação do
compromisso constitucional no sentido da acentuação da respectiva jurisdicionalização
e subjectivação. Desdobrou-se a garantia constitucional de acesso à justiça
administrativa em dois direitos fundamentais: um relativo ao recurso de
anulação (art.º 268º nº4) e outro referente a todos os demais meios processuais
(art.º 268º nº 3). Deles resultou a consagração de um princípio constitucional
de protecção jurisdicional plena e efectiva dos particulares, abandonando a
noção autoritária de acto definitivo e executório e colocando a tónica na
protecção jurídica e subjectiva – a Constituição abandonou a cláusula
restritiva actos definitivos e executórios, para passar a aferir a
recorribilidade em razão do critério da lesão dos direitos dos particulares.
Contudo,
como já enunciado, até ao final do século XX, vivia-se numa situação
juridicamente insustentável de discrepância entre o texto e a prática
constitucional no que respeitava ao Contencioso Administrativo.
Só em 2004 se resolveu esta discrepância. Até aí havia um problema de jurisdição
em caso de acidentes de viação. Se, por exemplo, o carro do ministro da justiça
embatia contra uma criança, se o ministro fosse dentro do carro era uma relação
especial de serviço público, porque este podia dar ordens ao motorista e, por
isso, era da competência dos tribunais administrativos, se não fosse era caso
de gestão privada submetida aos tribunais comuns, regulado pelo direito civil.
Não havia qualquer razoabilidade nesta distinção e tornava o processo longo, porque
primeiro tinha que se decidir qual a jurisdição competente e só depois se
iniciava o julgamento! Em 2004, vem estabelecer-se que é sempre competente a
justiça administrativa, a lei ordinária consagrou
expressamente a possibilidade de os tribunais condenarem a administração à
adopção de condutas legalmente devidas, deixámos de ter uma lógica de
recurso, para passar a ser verdeiro juiz, sendo que a primeira apreciação jurisdicional
do acto administrativo é a acção, aceitando-se todos os meios de prova,
passando haver audiência de julgamento, contraditório em audiência, … Para além
disso, o legislador acabou com o acto de indeferimento tácito, prevendo a acção
de condenação por omissão.
No
entanto, o trauma da infância difícil não deixa de chegar aos nossos dias, uma
vez que ainda hoje os actos do Primeiro-Ministro não são julgados nos
tribunais administrativos de primeira instância, mas sim no Supremo Tribunal
Administrativo, embora por razões protocolares.
Inês Chorro - 140111062
Inês Chorro - 140111062
Sem comentários:
Enviar um comentário