domingo, 12 de outubro de 2014

Legalidade vs. Mérito no contexto da Separação de Poderes


O "trauma" do Direito Administrativo, referido incessantemente pelo Professor Vasco Pereira da Silva, tem a sua génese na promiscuidade que existiu na Administração Pública até um passado muito recente (2004, em Portugal), onde fortes resquícios do Administrador-Juiz se fizeram sentir. Enquanto Direito Instrumental, o Contencioso levou naturalmente "por tabela".
Ora, como já é sabido, a aplicação dos métodos Freudianos ao Direito Administrativo levou o Prof. VPS a salientar uma "recordação de cobertura", em que aquilo que era formalmente afirmado (o princípio da separação de poderes) acabava por ser frontalmente contradito por aquilo que era materialmente concretizado (uma clara violação da separação de poderes, em que quem administrava julgava também). 

Desse período do "Pecado Original" até hoje, várias foram as vozes que defenderam a necessidade de reinterpretação da separação de poderes, para evitar que a função jurisdicional administrativa fosse absorvida pela própria Administração. Porém, não nos interessa agora olhar para a história.
Este "post" vem focar-se na separação de poderes e sua reinterpretação, olhando essencialmente para o artigo 3º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (dorovante: CPTA), à luz do problema de saber se o Contencioso Administrativo abrange só questões de legalidade das decisões administrativas ou também de mérito.

Pelo número 1 do artigo 3º, parece evidente que "no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação". Ou seja, só questões de legalidade são analisadas pelos Tribunais Administrativos e não questões de mérito. Parece ser esta a regra geral.

De forma original, o número 2 do artigo 3º confere aos Tribunais poderes de fixação oficiosa de um prazo para o cumprimento de deveres e também de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, de forma a garantir uma efectividade da tutela jurisdicional (referida pelo art. 2º CPA, repetindo o conteúdo do art. 268º/4 CRP). E mais: como realça o Prof. VPS, essas sanções pecuniárias compulsórias não se limitam ao domínio do processo executivo (artigo 169º), mas também ao processo declarativo (art. 66º/3) e ao cautelar (art. 127º/2). 
Elogiando esta inovação administrativa, alega o Professor estar o nosso CPA na vanguarda europeia em termos de eficácia do Contencioso Administrativo!

Todavia - e numa análise mais cuidada - este número 2 representa também uma excepção parcial à regra geral do número 1, na medida em que o Tribunal não se limita a conhecer da questão de legalidade, mas julga sob uma questão de oportunidade, que é a "determinação do momento do cumprimento da sentença". 
Coloca-se aqui desde logo o problema de saber qual a "linha divisória entre Administração e Justiça". Até onde poderá ir o Tribunal no julgamento da Administração Pública? A resposta dada a este problema terá necessariamente de ser cuidadosamente calculada, pois sobre ela recai o risco de voltarmos a uma fase de "Pecado Original", em que em vez de termos um Administrador-Juiz, teríamos um Juiz-Administrador, com os Tribunais Administrativos a absorverem a própria Administração (um pouco "à la" Tribunal Constitucional em relação ao Governo nestes últimos Acórdãos).

Mas atenção! O número 3 do artigo 3º vai ainda mais longe; consagra a possibilidade de o Tribunal se substituir à Administração Pública, assegurando a "execução das suas sentenças, designadamente daquelas que proferem contra a Administração, seja através da emissão de sentença que produza os efeitos do acto administrativo devido, quando a prática e o conteúdo deste acto sejam estritamente vinculados, seja providenciando a concretização material do que foi determinado na sentença".

Dito isto: onde está, afinal, a "linha divisória entre Administração e Justiça"?

O Professor Vasco Pereira da Silva afirma que os poderes conferidos aos Tribunais Administrativos pelo artigo 3º/2 e 3 não põem em causa o princípio da separação de poderes, "já que a intervenção substitutiva do tribunal só é possível em caso de não execução voluntária da sentença declarativa por parte da autoridade administrativa, e na condição de estar em causa o exercício de poderes vinculados". Diz ainda que "o processo administrativo com estas alterações deixou de corresponder ao conceito tradicional de "mera legalidade", superando os "traumas de infância"".

Para definir o limite da actuação do Tribunal parece-me correcto apontar novamente para o Professor, que usa como exemplo a versão anterior da modificação objectiva da instância (artigos 45º e 49º CPTA, versão anterior). Colocavam-se sérias dúvidas quanto aos poderes conferidos ao Tribunal Administrativo para modificar a instância, inclusive modificar o pedido feito pelas partes por um pedido indemnizatório, caso o juiz previsse que se pudesse vir a verificar uma situação de impossibilidade absoluta de incumprimento da sentença, ou de grave prejuízo para o interesse público. Alegava VPS haver inconstitucionalidade por violação da separação de poderes, do princípio do dispositivo quanto ao pedido e ainda pela princípio da plenitude da tutela do particular. 
E o que é certo é que o legislador parece ter dado razão a VPS, pois o regime da modificação objectiva da instância foi alterado, restringindo o âmbito de aplicação da norma aos casos de impossibilidade absoluta ou de excepcional prejuízo para o interesse público; e ainda reduzindo a possibilidade de modificação às hipóteses de existência de acordo das partes ou de solicitação do autor, em termos que não parecem ser inconstitucionais. (Vide: "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise", Silva, Vasco Pereira da, 2º Edição, pp. 251).

Será que o artigo 3º extravaza, afinal, os limites de actuação dos Tribunais Administrativos, no quadro da separação de poderes? A questão poder-se-ia colocar especialmente quanto aos poderes de fixação oficiosa de um prazo conveniente e oportuno e quanto à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória do 3º/2.

Não parece. Ainda que a resposta tenda a ser abstracta por nos situarmos no campo dos princípios e nos referirmos a situações gerais e hipotéticas, parece-me que o artigo 3º não viola, na sua essência, a separação de poderes. Ultrapassado o "trauma" original, os últimos 200 anos foram de esforço para jurisdicionalizar a Administração Pública, trazê-la para o campo do poder judicial e separá-la do poder executivo, sujeitando a Administração ao Direito. 
O artigo 3º aparece na mesma linha do esforço que tem sido feito, e não corresponde ao "passo a mais" quanto à actuação dos Tribunais em face da Administração. Olhando para a ratio dos poderes conferidos aos Tribunais (quer no número 2, como no 3), percebe-se que o que se pretende tutelar são os particulares. Pretende-se garantir uma tutela jurisdicional efectiva e a eficácia dessa tutela. Sem a sanção pecuniária compulsória e sem a possibilidade de o Tribunal se substituir à Administração estaríamos - a meu ver - perante uma lei imperfeita. Aliás: perante um princípio imperfeito. Pois têm de existir consequências muito práticas e eficazes para assegurar os deveres impostos à Administração, que passam inevitavelmente por um órgão que controle esse cumprimento. E que órgão será esse? Os Tribunais Administrativos, sem dúvida nenhuma. Além disso, se se olhar para o artigo 3º, entende-se que a excepção parcial do número 2 prende-se única e exclusivamente com uma correcta e sensata garantia da eficácia da tutela jurisdicional, e não consubstancia nenhuma análise do Tribunal quanto ao mérito da actuação da Administração. Logo, não vejo razões para se criticar o preceito.

Fazendo uma analogia com o Direito Fiscal, parece-me que os limites da Administração Fiscal face aos contribuintes de IRC devem ser usados como exemplo para definir os limites de actuação dos Tribunais Administrativos face à Administração Pública, nos seguintes termos: existe um direito a ser mau gestor. 
Com isto quero dizer que aqui (no Contencioso Administrativo), existe também um direito a ser mau administrador. Ou seja, a análise de mérito está totalmente fora do âmbito de competência dos Tribunais, sob pena de violação da separação de poderes. (Haverá certamente uma responsabilidade política, mas que nada tem a ver com a função jurisdicional). 
Aquilo que não se admite nem pode admitir é que se administre à margem da lei. E é aí que intervém o Tribunal Administrativo. Ora, enquanto a actuação do Tribunal se limitar a analisar apenas o cumprimentos das normas e dos princípios jurídicos que vinculam a Administração, não me parece haver qualquer problema em termos de separação de poderes. Recorrer a uma análise de conveniência e oportunidade para fixar o prazo é olhar para o mérito, sim. Mas olhar para o mérito num contexto de fiscalizar a legalidade da actuação da Administração Pública, e não a conveniência da decisão administrativa em si.
Assim, não parece ser criticável a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva, que vê nesta redacção do artigo 3º CPTA uma "superação dos traumas de infância", pois não se vislumbra aqui qualquer violação do princípio da separação de poderes.


Miguel de Seixas Baptista - 140111505

Sem comentários:

Enviar um comentário