terça-feira, 21 de outubro de 2014

Processos em massa - Reflexão das propostas de revisão do CPTA (art. 48.º)

Origem e natureza dos processos em massa

O processo em massa é um expediente de agilização e economia processual que tem como principal objectivo a resposta célere e uniforme a situações contemporâneas e materialmente idênticas. 

Com origem no Direito Espanhol (Ley de la Jurisdiccion Contencioso-Administrativa, 1998), este mecanismo surge como reacção à massificação das relações entre a Administração Pública e os particulares, bem como à crescente tutela destes últimos. Permite, portanto, evitar que o tribunal se pronuncie autonomamente sobre processos que pela sua natureza (de facto ou de direito) podem ser tratados simultânea e integramente.

Surgem regularmente - nomeadamente no âmbito da função pública -, actos administrativos que incidem sobre diferentes esferas jurídicas mas que enformam a mesma relação jurídica material. A situação actual da colocação dos professores nos respectivos postos de trabalho é exemplo paradigmático do contexto que retratamos.

Se várias acções dão entrada nas instâncias administrativas, torna-se desnecessário (excepto se as acções apresentarem diferenças que imponham juízo autónomo) sobrecarregar o tribunal com processos separados que tendem com grande probabilidade a ser objecto da mesma decisão.

Regime Actual

O Contencioso Administrativo português estabelece actualmente, através do artigo 48.º do Código de Procedimento do Tribunal Administrativo, três requisitos dos quais a possibilidade de recorrer ao mecanismo dos processos em massa está dependente:

  1. Terem sido intentados mais de 20 processos;
  2. Haver diferentes pronúncias da mesma entidade administrativa;
  3. Identidade da relação jurídica controvertida ou identidade das normas aplicáveis à mesma matéria de facto relativa a relações jurídicas distintas

Podemos adicionar a esta enumeração um requisito indirecto decorrente do princípio da territorialidade que se consubstancia na necessidade de todos os processos serem apresentados no mesmo tribunal.

O n.º 1 do artigo 48.º atribui competência para a decisão de utilização deste mecanismo ao Presidente do Tribunal, devido ao seu maior conhecimento da generalidade dos casos apresentados naquela instância.

Quando utilizado, produz a suspensão de todos os processos, excepto do processo-modelo - aquele que é utilizado como ponto de referência da tramitação do processo em massa, a partir do qual o tribunal (aliás, todos os juízes daquele tribunal ou secção - n.º 4 do art. 48.º) ajuizará e emitirá a sua sentença. 

O n.º 3 do art. 48.º reconhece o risco, ao suspender todos os processos, de haver elementos que ficam de fora da instrução, ainda que certamente a decisão terá valor para os autores dos processos suspensos. Assim é necessário que no processo-modelo se debatam todos os aspectos de facto e de direito da questão, não limitando de modo algum o âmbito da instrução.

Quando à forma de processo, o n.º 4 do art. 48.º estatui a aplicação do disposto no CPTA para os processos urgentes.

O n.º 5 do artigo 48.º estabelece as faculdades conferidas aos particulares quando seja emitida pronúncia transitada em julgado e seja de entender que a mesma solução pode ser aplicada aos processos suspensos, no caso de estes não apresentarem especificidades que importa atender.

Os autores dos processos suspensos podem, portanto, escolher, no prazo de 30 dias:

  • “Desistir do seu próprio processo” (al. a);
  • “Requerer ao tribunal a extensão ao seu caso dos efeitos da sentença proferida” (al. b);
  • “Requerer a continuação do seu próprio processo” (al. c)
  • “Recorrer da sentença, se ela tiver sido proferida em primeira instância” (al. d);

Projecto de Revisão do CPTA

Está neste momento sob a forma de projecto de lei um Projecto de Revisão do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

No que respeita ao instituto que estamos a explorar, há diferenças consideráveis que abrem as portas a uma reflexão sobre o espírito de justiça de uma reforma administrativa que caminhe nesse sentido.

Quanto ao art. 48.º, existe uma redução quantitativa do primeiro requisito. Propõe-se que surja a possibilidade de utilizar o mecanismo dos processos em massa quando sejam intentados mais de 10 processos (e não 20).

Existe também uma proposta de atribuição de competência ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo quando os processos a apensar são intentados em tribunais diferentes (art. 46.º/5 do Projecto de Revisão). Assim, propõe-se uma delimitação mais abrangente do princípio da territorialidade no sentido em que já é possível processos intentados em tribunais administrativos diferentes serem objecto desta uniformização. Procura-se, portanto, alargar o âmbito de aplicação do mecanismo.

O Projecto de Revisão ainda inova criando os arts. 97.º e 99.º, criando uma nova forma de processo urgente para alguns casos de processos em massa, nomeados, na minha opinião exaustivamente, no n.º 1 do art. 99.º. São eles:

  1. Concursos de pessoal com mais de 20 participantes;
  2. Procedimentos de realização de provas cujos participantes sejam em número superior a 20;
  3. Procedimentos de recrutamento com mais de 20 envolvidos;

O projecto apresenta também que o local de propositura se torne o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa no que respeita a esta forma especial de procedimento.

Reflexão em comparação

Importa agora explorar se, de um ponto de vista geral, o Projecto de Reforma propõe uma evolução ou um retrocesso no que respeita ao tratamento dado aos processos em massa.

A primeira medida a analisar é a da redução do número de processos apresentados para activar este mecanismo. Foi defendido que esta medida implicará um aumento dos processos em massa o que poderia conduzir a um congestionamento do contencioso administrativo. 
Parece-me que esta conclusão não é certa: é verdade que todos os juízes daquele tribunal são mobilizados para ajuizar o caso e quantos mais processos urgentes houver maior será a demora do processo comum, mas os processos em massa permitem a uniformização de decisões que podiam ser múltiplas, o que, a acontecer, daria ao tribunal mais trabalho na exacta proporção do número de acções repetidas. Assim salvaguarda-se a eficiência no procedimento administrativo.  Não me parece que esta redução do requisito quantitativo venha a piorar a já incrustada patologia de demora dos processos na justiça portuguesa, embora possa também não a ajudar particularmente.

Quanto aos n.º 4 e n.º 5 da proposta para o artigo 48.º, a atribuição de competência ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo relativamente aos processos que tenham sido apresentados em tribunais diferentes é uma medida, mais uma vez, susceptível de ser discutida. Por um lado, propõe-se (e bem na minha opinião), uma expansão do âmbito de incidência deste mecanismo de modo a tornar a realidade uniformizadora de cariz nacional, atribuindo a faculdade de impulsionar o processo em massa a qualquer dos tribunais e partes envolvidos. Porém, essa expansão esbarra numa centralização do poder decisório - não parece justificado atribuir a competência de estabelecer quais os processos que se suspendem e quais os que devem proceder a um órgão que tem muito pouco conhecimento de causa, tão afastado das instâncias inferiores e regionais. Mas pode também a comunicação entre as várias instâncias ser feita de um modo satisfatório e, se o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo for devidamente informado das circunstâncias de facto e de direito que os processos suscitam, pode existir - ainda que mínima - uma melhoria no que respeita à economia e celeridade processuais.

Por fim, importa debruçarmo-nos sobre o processo especial adicionado no art. 99.º do Projecto de Reforma. O n.º 2 estatui que as acções a que se refere o n.º 1 devem ser propostas no tribunal administrativo do círculo de Lisboa. 
Esta medida parece extremamente insatisfatória pois sem qualquer razão particular, “metropolizamos" a Justiça Administrativa e, no processo, criamos situações de ineficiência e custos (ainda mais) exacerbados para os particulares.

Assim, concluo que no que concerne a este instituto processual dos processos em massa, o Projecto de Reforma identifica os problemas certos mas propõe soluções que reformam pouco. Há poucas medidas que provocam alterações substanciais, são remendos que não curam na causa, agem no sintoma. No meio, traços de centralização e litoralização, nada necessários no momento em que vivemos.


Tomás Furtado Martins
140110081

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