domingo, 19 de outubro de 2014

O conceito de "parte" no Contencioso Administrativo e sua evolução

O CPTA hoje consagra um principio de partes e, para além disso, um principio de igualdade das partes. No entanto, esta é uma evolução relativamente recente e que traduz a superação dos “traumas de infância” que marcaram o nascimento do Direito Administrativo.
Apesar de existirem princípios semelhantes no nosso Direito Processual Civil, trata-se de uma revolução ao nível do Contencioso Administrativo – antigamente o processo era objectivo: juiz estava a apreciar o caso que lhe era trazido por um particular, sendo que o particular não era entendido como uma parte nem em sentido formal nem material (era uma espécie de procurador publico que ajudava o juiz) e a administração não era uma parte mas um entidade recorrida (a administração era uma entidade que não estava a ser julgada, ainda que estivesse em juízo – ela estava numa posição de autoridade equiparada ao tribunal). Resumidamente, de acordo com a Doutrina Clássica do Direito Administrativo, nem o particular nem a administração eram considerados partes no processo.
O artigo 6º do actual CPTA consagra um processo de partes e a igualdade de facto das partes: quer o particular quer a administração são duas partes em sentido material; do ponto de vista processual são partes não só por introduzirem um juízo, mas são partes que devem intervir em todos os momentos do processo de forma igualitária.
Porque desta revolução? Estamos a superar os traumas do contencioso administrativo e da infância difícil, esta matéria era muito marcada por uma logica da autoridade do direito administrativo clássico: a administração definia o direito e o particular era um objecto de direito (e não um sujeito de direito).
Há uma dupla revolução simultânea: afirmação de direitos subjectivos dos particulares nas relações administrativas e como consequência desta mudança, permite-se que o particular intervenha no processo para defender esses direitos.
O particular hoje é sujeito de direito que estabelece relações com a administração. Mas do ponto de vista substantivo esta realidade não corresponde ao que se verificava nos primórdios do Direito Administrativo: começou por negar-se a susceptibilidade de os sujeitos serem titulares de direitos subjectivos contra a administração (Otto Mayer recusava de forma veementemente esta possibilidade). O particular possuía direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, mas não possuía direitos no âmbito de uma relação administrativa.
Otto Mayer defendia que o particular ainda que não fosse titular de direitos subjectivos era protegido pelo “Direito objectivo” na medida em que se for cumprida a lei, ele resulta indirectamente protegido. E portanto há um reflexo do direito objectivo na esfera dos particulares. Esta posição é insustentável no entender do Professor Vasco Pereira da Silva.
Vai surgir nova perspectiva desta realidade, a construção subjectivista (defendida entre outros por Marcello Caetano): particular possuía direito à legalidade – direito objectivo a obter o cumprimento da norma jurídica, que corresponderia a um direito subjectivo abstracto dos particulares “é uma realidade que sendo de todos não é de ninguém”
Estas construções dominantes nos séculos XVIII e XIX, iam sendo pouco a pouco colocadas em pratica no processo: esta lógica objectiva deveria ter dado origem a um processo em que todo e qualquer particular deveria poder aceder a um tribunal - um processo objectivo deveria corresponder a um modelo de acção popular em que todas as pessoas se pudessem dirigir a tribunal.
Os tribunais administrativos nunca aceitaram esta teoria e a doutrina administrativa começou a estabelecer critérios de delimitação da legitimidade, sendo chamados a juízo apenas aqueles que demonstrem interesse de facto em agir (ainda não se fala em interesse de direito e portanto não corresponde a direitos subjectivos).
A partir do século XX esse “interesse” vai ganhando características e vai se subjectivando: o interesse tem que ser directo (particular tem que ser directamente afectado por aquele acto administrativo), pessoal (é aquele individuo que foi lesado pelo acto administrativo) e legitimo (porque corresponde a algo que tem a ver com cumprimento da legalidade). Estas três características visavam modelar o interesse e criar uma realidade processual que substitui o direito subjectivo que se nega existir. Esta teorização, assente na ideia de legitimação, pretendia compensar a negação da titularidade de direitos subjectivos aos particulares.
No contencioso administrativo a legitimidade passou a ter uma função preponderante que não tem noutros ramos processuais – Professor Marcello Caetano defendia ser o único critério de acesso ao juiz. No Contencioso Administrativo temos uma lógica invertida: não é aquele que tem um direito que vai a juízo, mas é aquele que prova a legitimidade para poder ir a juízo.
Mas se isto era assim logo no início do século XX, cedo se começou a perceber que havia aqui algumas contradições: é neste momento que nasce a Teoria do Interesse Legitimo – há uma substancialização da posição dos particulares em face da administração (enfatizando-se o conceito de interesse em face da administração).
A primeira construção do interesse legitimo resulta da diferença entre carácter directo ou indirecto – ainda hoje é este o critério utilizado pelo professor Freitas do Amaral para distinguir direito subjectivo e interesse legitimo.
Esta distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos vai ser completada por um terceiro elemento: interesses difusos – refere-se a interesses colectivos que não são  indivisíveis e portanto há um interesse material de cada particular ainda que em relação a cada um deles seja um interesse difuso – sendo que todos os direitos são indivisíveis (educação, saudade e ambiente). “É tanto de um particular como de todos os outros protegidos”.
Mas surgiram também concepções unitárias: Teoria das Normas de Protecção – construída por um contemporâneo de Otto Mayer, Buhler.
Buhler dizia que havia três condições para considerarmos estar na presença de um direito subjectivo: era preciso haver uma norma jurídica vinculativa, ou seja, uma norma que estabelecesse conduta obrigatória para a administração; é preciso que essa norma existisse também para proteger os interesses dos particulares (o “também” invertia a logica da construção segundo a qual só se protege directamente o interesse publico e indirectamente os particulares - defendia que também defendia directamente os particulares); é preciso que o particular tenha um direito processual para poder tutelar o seu direito substantivo.
Esta construção foi muito importante mas ainda era algo limitada, uma vez que o conjunto de direitos aqui em jogo era muito restrito - Buhler não estava a pensar numa lógica de estado-administrador que implicou significativo alargamento de titularidade de direitos.
Mas aquela construção abriu caminho a um alargamento que foi iniciado sobretudo por Bachof que modificou a teoria de Buhler, adaptando-a a realidade dos modernos estados. Veio dizer que uma das condições não se aplicava (a primeira condição, partindo da lógica que não há nunca actos integralmente vinculados ou integralmente desvinculados e portanto o problema da vinculatividade não se colocava em relação à norma – ao reformular esta primeira condição, veio alargar o universo dos direitos subjectivos) e as outras tinham que ser entendidas em termos diferentes.
Em relação à segunda condição, diz que o principal objectivo da administração, deve ser a protecção dos particulares: vem subverter a lógica da protecção, que deve ser alargada e portanto uma norma que estabelece um dever, deve ser ao mesmo tempo uma norma que estabelece um direito.
Em relação à terceira condição, vem dizer que o facto de a maior parte das constituições prever um direito de acesso aos tribunais, não era uma causa da existência de direito mas uma consequência da tutela do direito.
Esta nova construção da “teoria do direito subjectivo” introduz radical alargamento em relação a lógica tradicional.
Portanto quer haja um direito quer haja um interesse, sempre estaremos na presença de um direito subjectivo. Depois os direitos em causa podem ter conteúdos diferentes, mas isso é assim em qualquer ramo do Direito.
Se isto era assim no quadro da teorização de Bachof, nos anos 70 vai se dar ainda outro alargamento e portanto passam a enquadrar-se naquela teoria também direitos fundamentais como o direito à Educação, o Direito à Saúde ou o Direito ao Ambiente.
Nos dias que correm é unânime a ideia de que o particular tem posições subjectivas perante a administração – direitos subjectivos para o Professor VPS (mesmo que adoptemos concepção trinitária e distingamos ainda os interesses legítimos e interesses difusos).

Diogo Pinto
140111018

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