- Considerações acerca da dicotomia entre
acções especiais e acções comuns -
- no Processo Administrativo -
Qualquer
pessoa tem os seus defeitos e as suas pequenas particularidades que tanto o
distinguem quanto dão graça à sua personalidade. É o caso de quem aponta para a
esquerda e indica “direita”, de quem continua sem ter resposta automática para
que mês vem primeiro – julho ou junho? – ou ainda de quem, insanavelmente,
continua a chamar melão à meloa.
Outros
casos há em que a troca efectuada é demasiado grave para se deixar passar sem
avaliação profissional. Surge-nos a dislexia. A dislexia é uma perturbação que
se manifesta numa dificuldade nos processos de descodificação fonológica e lexical.
Resulta, de entre outros factores, de alterações neurobiológicas na forma como o
cérebro processa a informação linguística, e de alterações em domínios
neuropsicológicos que conduzem a um conjunto significativo de alterações na
leitura e escrita.
Ora, é
precisamente neste contexto que nos cabe diagnosticar o legislador português
que tão pacificamente, e quiçá pensando que ninguém notaria, teima em chamar de
“especial” ao que é comum, e “comum” ao que é especial. Estamos pois a
referir-nos às acções administrativas que, até agora irremediavelmente, foram
baptizadas com um nome que não é o seu.
Mas
comecemos pelo princípio.
Encontra-se
consagrado no artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa o
direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos
particulares. Tal direito é igualmente o princípio fundamental de organização
do Contencioso Administrativo. Este princípio da tutela judicial efectiva
encontra-se também presente no artigo 2.º do Código de Processo Administrativo
(doravante CPA), e corresponde tanto ao direito a obter, em tempo útil, uma
decisão jurídica favorável, como ao direito a uma justiça material, que se pronuncie
sobre o mérito das pretensões formuladas, não se limitando a uma mera
apreciação formal do litígio.
É na
tarefa de reforma e actualização do Contencioso Administrativo que o
legislador, tomando em consideração o referido direito-princípio, se vê perante
as alternativas de, primeiro, criar tantos meios processuais quanto os efeitos
das sentenças, ou, segundo, unificar todos os meios processuais
independentemente dos pedidos ou dos efeitos das sentenças.
A escolha
foi feita e optou-se pela unificação, consagrando-se, consequentemente, uma
dicotomia de meios processuais entre a acção administrativa comum e a acção
administrativa especial. Resta agora saber qual o seu critério de distinção.
Comparando
os artigos 37.º e 46.º do CPA, parece que o critério tomado pelo legislador reformador
foi o de considerar que pertencem à acção administrativa comum todos os
litígios administrativos não especialmente regulados, e que pertencem à acção
administrativa especial os processos relativos a actos e a regulamentos
administrativos.
Pergunta-se
se a lógica não estará invertida. Afinal, entende-se por “especial”,
linguisticamente falando, algo que é particular, relativo a determinado
aspecto, peculiar ou mesmo fora do comum. Acontece que aqui, aquela que é
chamada de “acção especial” é de facto a acção mais comum, tanto no sentido de
ser mais frequente, uma vez que representa a esmagadora maioria dos casos que
se colocam no quadro do processo administrativo, como no sentido de ser aquela
que mais caracteriza o Contencioso Administrativo.
Parece
que esta dicotomia tem subjacente uma visão fechada e já muito ultrapassada daquele
que é o Contencioso Administrativo, e que nos faz entrar naquele que é o domínio
neuropsicológico dos traumas da sua infância difícil.
Recuamos
então ao tempo do administrador-juiz, onde os poderes da entidade controladora
estavam limitados à anulação dos actos administrativos. Aí, a ideia de poder
administrativo justificava regras excepcionais, traduzidas numa acção especial
a que corresponderia a tal ideia de um contencioso de mera anulação. No
entanto, hoje, já se considera que os tribunais administrativos são verdadeiros
e próprios tribunais, que devem ter por critério e medida os direitos dos
particulares. Deixou de fazer sentido uma qualquer limitação dos poderes do
juiz, uma vez que a própria reforma do Contencioso Administrativo vem afastar
estas limitações.
Se assim
é, e se a acção administrativa especial permite tanto a anulação de actos como
a condenação na prática de actos administrativos devidos, não se entende onde
reside a especialidade.
Mais se
diga que o outro evento traumático, de concepção do Direito Administrativo como
um conjunto de exceções ao Direito Civil, e da qual resultada a ideia de
especialidade do Direito Administrativo, se encontra também ultrapassado uma
vez que a Administração, enquanto Prestadora e Infra-estrutural, passou a ser
considerada autonomamente, e como tendo regras e valores próprios.
Vistas
bem as coisas, percebemos que não faz qualquer sentido manter esta
esquizofrenia de meios processuais, uma vez que não se mantém já as razões para
tal.
Em
conclusão, cumpre-nos deixar para reflexão a ideia de que, com a ampla
possibilidade de pronúncia dos tribunais administrativos, seria de pensar que os
complexos traumáticos da infância do Contencioso Administrativo se vissem superados,
mas são estas pequenas demonstrações, sob forma de dislexia legislativa, que
nos mostram todo o recalcamento que permanece associado à evolução do nosso
Contencioso, e que ainda hoje perpetua.
Inês Metello - 140111090
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