segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Dislexia Legislativa

- Considerações acerca da dicotomia entre acções especiais e acções comuns -
- no Processo Administrativo -

Qualquer pessoa tem os seus defeitos e as suas pequenas particularidades que tanto o distinguem quanto dão graça à sua personalidade. É o caso de quem aponta para a esquerda e indica “direita”, de quem continua sem ter resposta automática para que mês vem primeiro – julho ou junho? – ou ainda de quem, insanavelmente, continua a chamar melão à meloa.
Outros casos há em que a troca efectuada é demasiado grave para se deixar passar sem avaliação profissional. Surge-nos a dislexia. A dislexia é uma perturbação que se manifesta numa dificuldade nos processos de descodificação fonológica e lexical. Resulta, de entre outros factores, de alterações neurobiológicas na forma como o cérebro processa a informação linguística, e de alterações em domínios neuropsicológicos que conduzem a um conjunto significativo de alterações na leitura e escrita.
Ora, é precisamente neste contexto que nos cabe diagnosticar o legislador português que tão pacificamente, e quiçá pensando que ninguém notaria, teima em chamar de “especial” ao que é comum, e “comum” ao que é especial. Estamos pois a referir-nos às acções administrativas que, até agora irremediavelmente, foram baptizadas com um nome que não é o seu.
Mas comecemos pelo princípio.

Encontra-se consagrado no artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa o direito fundamental a uma tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares. Tal direito é igualmente o princípio fundamental de organização do Contencioso Administrativo. Este princípio da tutela judicial efectiva encontra-se também presente no artigo 2.º do Código de Processo Administrativo (doravante CPA), e corresponde tanto ao direito a obter, em tempo útil, uma decisão jurídica favorável, como ao direito a uma justiça material, que se pronuncie sobre o mérito das pretensões formuladas, não se limitando a uma mera apreciação formal do litígio.
É na tarefa de reforma e actualização do Contencioso Administrativo que o legislador, tomando em consideração o referido direito-princípio, se vê perante as alternativas de, primeiro, criar tantos meios processuais quanto os efeitos das sentenças, ou, segundo, unificar todos os meios processuais independentemente dos pedidos ou dos efeitos das sentenças.
A escolha foi feita e optou-se pela unificação, consagrando-se, consequentemente, uma dicotomia de meios processuais entre a acção administrativa comum e a acção administrativa especial. Resta agora saber qual o seu critério de distinção.
Comparando os artigos 37.º e 46.º do CPA, parece que o critério tomado pelo legislador reformador foi o de considerar que pertencem à acção administrativa comum todos os litígios administrativos não especialmente regulados, e que pertencem à acção administrativa especial os processos relativos a actos e a regulamentos administrativos.
Pergunta-se se a lógica não estará invertida. Afinal, entende-se por “especial”, linguisticamente falando, algo que é particular, relativo a determinado aspecto, peculiar ou mesmo fora do comum. Acontece que aqui, aquela que é chamada de “acção especial” é de facto a acção mais comum, tanto no sentido de ser mais frequente, uma vez que representa a esmagadora maioria dos casos que se colocam no quadro do processo administrativo, como no sentido de ser aquela que mais caracteriza o Contencioso Administrativo.
Parece que esta dicotomia tem subjacente uma visão fechada e já muito ultrapassada daquele que é o Contencioso Administrativo, e que nos faz entrar naquele que é o domínio neuropsicológico dos traumas da sua infância difícil.
Recuamos então ao tempo do administrador-juiz, onde os poderes da entidade controladora estavam limitados à anulação dos actos administrativos. Aí, a ideia de poder administrativo justificava regras excepcionais, traduzidas numa acção especial a que corresponderia a tal ideia de um contencioso de mera anulação. No entanto, hoje, já se considera que os tribunais administrativos são verdadeiros e próprios tribunais, que devem ter por critério e medida os direitos dos particulares. Deixou de fazer sentido uma qualquer limitação dos poderes do juiz, uma vez que a própria reforma do Contencioso Administrativo vem afastar estas limitações.
Se assim é, e se a acção administrativa especial permite tanto a anulação de actos como a condenação na prática de actos administrativos devidos, não se entende onde reside a especialidade.
Mais se diga que o outro evento traumático, de concepção do Direito Administrativo como um conjunto de exceções ao Direito Civil, e da qual resultada a ideia de especialidade do Direito Administrativo, se encontra também ultrapassado uma vez que a Administração, enquanto Prestadora e Infra-estrutural, passou a ser considerada autonomamente, e como tendo regras e valores próprios.
Vistas bem as coisas, percebemos que não faz qualquer sentido manter esta esquizofrenia de meios processuais, uma vez que não se mantém já as razões para tal.


Em conclusão, cumpre-nos deixar para reflexão a ideia de que, com a ampla possibilidade de pronúncia dos tribunais administrativos, seria de pensar que os complexos traumáticos da infância do Contencioso Administrativo se vissem superados, mas são estas pequenas demonstrações, sob forma de dislexia legislativa, que nos mostram todo o recalcamento que permanece associado à evolução do nosso Contencioso, e que ainda hoje perpetua. 

Inês Metello - 140111090

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