A doutrina clássica do contencioso tendia a considerar que o
que relevava para a determinação da causa de pedir eram as alegações do autor
referentes ao acto administrativo, nomeadamente quanto a saber qual o tipo de
invalidade que fere o acto, orientação subjectiva defendida em Portugal quer
pelo professor Marcello Caetano como pelo STA.
A orientação a tomar quanto à causa de pedir, primeiramente,
deve depender da função e da natureza do Contencioso administrativo: um
contencioso virado para a protecção jurídica subjectiva, pelo contrário,
configura a causa da pedir na sua ligação com os direitos dos particulares; não
é o acto administrativo que constitui o objecto do processo, mas sim o acto
enquanto lesivo de direitos dos particulares – a causa de pedir é uma
ilegalidade relativa porque relacionada com o direito subjectivo lesado,
devendo ser entendida em conexão com as pretensões formuladas pelas partes, as
quais, correspondem a direitos subjectivos dos particulares no caso da acção
para defesa de interesses próprios, ou são, antes, um mero expediente formal
para a tutela da legalidade e do interesse público num processo de partes como
sucede com a acção pública e a acção popular.
Tal é o entendimento da causa de pedir constante do CPTA, não
podendo o tribunal ocupar-se senão das questões suscitadas (95º n.º1). Regra
que corresponde à consagração de um princípio geral do contraditório, ainda que
temperado pela consagração de poderes inquisitórios do juiz. Por sua vez, o n.º
2 é norma especial para os processos impugnatórios de actos administrativos, o
que é explicável pela manifestação do ‘velho trauma’ de só atribuir importância
à questão da causa de pedir quando estão em causa actos administrativos.
Na primeira parte, estabelece-se que o tribunal se deve pronunciar
sobre todas as causas de invalidade, excepto quando não possa dispor dos
elementos indispensáveis para o efeito (95º2), com o objectivo de que o
julgador aprecie a integralidade dos direitos alegados. Determinando-se o dever
de conhecimento da integralidade da relação jurídica trazida a juízo,
previne-se o surgimento de verdadeiros círculos viciosos, de sucessivas e
infrutíferas apreciações jurisdicionais, numa dança contínua de anulações e
renovações de actos administrativos, gravemente lesiva dos direitos dos
particulares. A disposição contida na primeira parte do 95º2 não só não
constitui uma excepção à regra geral como tem que ver com qualquer alargamento
do objecto do processo para além das pretensões das partes, antes consagra um
entendimento da causa de pedir em conexão com os direitos dos particulares. Na
segunda parte do 95º2 determina-se que o tribunal deve identificar as causas de
invalidade diversas. Surge o problema de saber qual a amplitude deste dever do
juiz.
Do que se trata não é de introduzir factos novos mas sim de
identificar ou individualizar ilegalidades dos actos administrativos, distintas
das referenciados pelo autor, desde que elas resultem de alegações das partes,
podendo o juiz qualificar diferentemente os factos alegados pelas partes. Uma
coisa é dizer-se que o juiz está limitado à apreciação do acto na sua
relacionação com o objecto na sua relacionação com o direito subjectivo outra
coisa é dizer que o juiz se encontra obrigado a aceitar a qualificação
jurídica.
Do ponto de vista processual, os vícios do acto
administrativo eram vistos, pela doutrina e jurisprudência como uma forma de
introduzir em juízo a causa de pedir num contencioso concebido em termos
objectivos, constituindo portanto um expediente para aceder ao acto
administrativo, tendo como pretexto as alegações dos particulares dotados de
legitimidade processual, num controlo da actuação administrativa concebido em
termos limitados. Desta maneira, os vícios do acto administrativo forneciam um
álibi subjectivista para justificar um sistema de contencioso administrativo
objectivista.
Numa palavra, a causa de pedir não está mais condicionada
pela técnica dos vícios, nem tem de respeitar exclusivamente ao acto
administrativo impugnado, sendo delimitada apenas em razão dos direitos
alegados pelos particulares.
Para a acção pública e popular, está em causa a defesa da
legalidade feita em termos de um processo de partes, não estando a causa de
pedir condicionada pelo mecanismo dos vícios, devendo ser delimitada em razão
dos factos e alegações trazidas a juízo.
É no sentido do afastamento de uma visão restritiva da causa
de pedir correspondente à técnica dos vícios do acto administrativo que julgo
correcta a afirmação do 95º-2, que tem em vista algo de qualitativamente distinto
do mero exercício do poder de requalificação normativo dos argumentos
invocados, que é inerente ao princípio iura
novit cura. Está em causa a identificação, no episódio da vida que foi
trazida a juízo, de ilegalidades diversas daquelas que foram identificados pelo
autor.
O que está em causa é uma actuação administrativa lesiva de
direitos, e não o acto administrativo através da construção de uma pretensão
anulatória que é discutida em plenitude, o que conduziria ao entendimento de
que todas as possíveis causas de invalidade de que padeça o acto impugnado integram
a mesma causa de pedir pelo que a identificação, pelo tribunal, de qualquer
delas não o afasta do objecto do processo, conforme entende o professor Mário
Aroso de Almeida.
Do ponto de vista teórico, a construção da pretensão
anulatória, ou do direito à anulação, é uma figura que não é só incapaz de
abranger o universo das posições jurídicas substantivas dos particulares
perante a Administração, como também obriga a distinguir os direitos
subjectivos públicos, em razão, não da posição jurídica do respectivo titular
mas do facto de se estar ou não perante um acto administrativo. A concepção do
direito à anulação do acto administrativo, assumindo uma natureza formalmente
subjectivista que acaba por conduzir, paradoxalmente ao resultado objectivista
de considerar a causa de pedir como relativa à validade do acto administrativo,
equivale a fazer do juiz uma parte no processo o que se afigura ser
manifestamente inconstitucional.
Uma coisa é considerar que o MP é uma parte no processo
administrativo e que por isso pode configurar as pretensões em juízo,
formulando pedidos e carreando factos novos para o processo, outra coisa é
admitir que o juiz que não é parte venha a fazer o mesmo, sem estar limitado
pelo objecto do processo. No direito português haverá que distinguir entre a
acção para defesa de direitos, em que a pretensão processual deduzida em juízo
corresponde aos direitos subjectivos dos particulares, numa concreta relação
jurídica, e a acção pública e a acção popular através das quais se processa a
tutela directa da legalidade e do interesse público.
Assim, o nº2 do 95º não constitui uma excepção mas constitui
a particularização dessa regra para os processos impugnatórios, tendo em contas
as mudanças operadas pela reforma. O legislador é mesmo escrupuloso no respeito
pelo principio do contraditório aí. Todas estas considerações acerca de um
entendimento da causa de pedir, ampliado em relação à lógica tradicional e ao
direito anterior mas determinado em razão das pretensões das partes, valem
igualmente para os processos de impugnação de regulamentos.
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