terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A causa de pedir enquanto objecto do processo

A doutrina clássica do contencioso tendia a considerar que o que relevava para a determinação da causa de pedir eram as alegações do autor referentes ao acto administrativo, nomeadamente quanto a saber qual o tipo de invalidade que fere o acto, orientação subjectiva defendida em Portugal quer pelo professor Marcello Caetano como pelo STA.

A orientação a tomar quanto à causa de pedir, primeiramente, deve depender da função e da natureza do Contencioso administrativo: um contencioso virado para a protecção jurídica subjectiva, pelo contrário, configura a causa da pedir na sua ligação com os direitos dos particulares; não é o acto administrativo que constitui o objecto do processo, mas sim o acto enquanto lesivo de direitos dos particulares – a causa de pedir é uma ilegalidade relativa porque relacionada com o direito subjectivo lesado, devendo ser entendida em conexão com as pretensões formuladas pelas partes, as quais, correspondem a direitos subjectivos dos particulares no caso da acção para defesa de interesses próprios, ou são, antes, um mero expediente formal para a tutela da legalidade e do interesse público num processo de partes como sucede com a acção pública e a acção popular.

Tal é o entendimento da causa de pedir constante do CPTA, não podendo o tribunal ocupar-se senão das questões suscitadas (95º n.º1). Regra que corresponde à consagração de um princípio geral do contraditório, ainda que temperado pela consagração de poderes inquisitórios do juiz. Por sua vez, o n.º 2 é norma especial para os processos impugnatórios de actos administrativos, o que é explicável pela manifestação do ‘velho trauma’ de só atribuir importância à questão da causa de pedir quando estão em causa actos administrativos.

Na primeira parte, estabelece-se que o tribunal se deve pronunciar sobre todas as causas de invalidade, excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito (95º2), com o objectivo de que o julgador aprecie a integralidade dos direitos alegados. Determinando-se o dever de conhecimento da integralidade da relação jurídica trazida a juízo, previne-se o surgimento de verdadeiros círculos viciosos, de sucessivas e infrutíferas apreciações jurisdicionais, numa dança contínua de anulações e renovações de actos administrativos, gravemente lesiva dos direitos dos particulares. A disposição contida na primeira parte do 95º2 não só não constitui uma excepção à regra geral como tem que ver com qualquer alargamento do objecto do processo para além das pretensões das partes, antes consagra um entendimento da causa de pedir em conexão com os direitos dos particulares. Na segunda parte do 95º2 determina-se que o tribunal deve identificar as causas de invalidade diversas. Surge o problema de saber qual a amplitude deste dever do juiz.

Do que se trata não é de introduzir factos novos mas sim de identificar ou individualizar ilegalidades dos actos administrativos, distintas das referenciados pelo autor, desde que elas resultem de alegações das partes, podendo o juiz qualificar diferentemente os factos alegados pelas partes. Uma coisa é dizer-se que o juiz está limitado à apreciação do acto na sua relacionação com o objecto na sua relacionação com o direito subjectivo outra coisa é dizer que o juiz se encontra obrigado a aceitar a qualificação jurídica.

Do ponto de vista processual, os vícios do acto administrativo eram vistos, pela doutrina e jurisprudência como uma forma de introduzir em juízo a causa de pedir num contencioso concebido em termos objectivos, constituindo portanto um expediente para aceder ao acto administrativo, tendo como pretexto as alegações dos particulares dotados de legitimidade processual, num controlo da actuação administrativa concebido em termos limitados. Desta maneira, os vícios do acto administrativo forneciam um álibi subjectivista para justificar um sistema de contencioso administrativo objectivista.
Numa palavra, a causa de pedir não está mais condicionada pela técnica dos vícios, nem tem de respeitar exclusivamente ao acto administrativo impugnado, sendo delimitada apenas em razão dos direitos alegados pelos particulares.

Para a acção pública e popular, está em causa a defesa da legalidade feita em termos de um processo de partes, não estando a causa de pedir condicionada pelo mecanismo dos vícios, devendo ser delimitada em razão dos factos e alegações trazidas a juízo.

É no sentido do afastamento de uma visão restritiva da causa de pedir correspondente à técnica dos vícios do acto administrativo que julgo correcta a afirmação do 95º-2, que tem em vista algo de qualitativamente distinto do mero exercício do poder de requalificação normativo dos argumentos invocados, que é inerente ao princípio iura novit cura. Está em causa a identificação, no episódio da vida que foi trazida a juízo, de ilegalidades diversas daquelas que foram identificados pelo autor.

O que está em causa é uma actuação administrativa lesiva de direitos, e não o acto administrativo através da construção de uma pretensão anulatória que é discutida em plenitude, o que conduziria ao entendimento de que todas as possíveis causas de invalidade de que padeça o acto impugnado integram a mesma causa de pedir pelo que a identificação, pelo tribunal, de qualquer delas não o afasta do objecto do processo, conforme entende o professor Mário Aroso de Almeida.

Do ponto de vista teórico, a construção da pretensão anulatória, ou do direito à anulação, é uma figura que não é só incapaz de abranger o universo das posições jurídicas substantivas dos particulares perante a Administração, como também obriga a distinguir os direitos subjectivos públicos, em razão, não da posição jurídica do respectivo titular mas do facto de se estar ou não perante um acto administrativo. A concepção do direito à anulação do acto administrativo, assumindo uma natureza formalmente subjectivista que acaba por conduzir, paradoxalmente ao resultado objectivista de considerar a causa de pedir como relativa à validade do acto administrativo, equivale a fazer do juiz uma parte no processo o que se afigura ser manifestamente inconstitucional.

Uma coisa é considerar que o MP é uma parte no processo administrativo e que por isso pode configurar as pretensões em juízo, formulando pedidos e carreando factos novos para o processo, outra coisa é admitir que o juiz que não é parte venha a fazer o mesmo, sem estar limitado pelo objecto do processo. No direito português haverá que distinguir entre a acção para defesa de direitos, em que a pretensão processual deduzida em juízo corresponde aos direitos subjectivos dos particulares, numa concreta relação jurídica, e a acção pública e a acção popular através das quais se processa a tutela directa da legalidade e do interesse público.


Assim, o nº2 do 95º não constitui uma excepção mas constitui a particularização dessa regra para os processos impugnatórios, tendo em contas as mudanças operadas pela reforma. O legislador é mesmo escrupuloso no respeito pelo principio do contraditório aí. Todas estas considerações acerca de um entendimento da causa de pedir, ampliado em relação à lógica tradicional e ao direito anterior mas determinado em razão das pretensões das partes, valem igualmente para os processos de impugnação de regulamentos.

Sem comentários:

Enviar um comentário