segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO - Simulação de Julgamento

Exmos. Senhores Juízes de Direito do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa,

Nos termos do nº1 do artigo 219º da Constituição da República Portuguesa, do artigo 85º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e do artigo 27º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho vem o Ministério Público emitir parecer sobre o processo em epígrafe, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:

A intervenção do Ministério Público no contencioso administrativo reveste-se de uma importância que resulta da natureza dos direitos e interesses que aí se discutem cabendo por isso pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e de interesses públicos especialmente relevantes, deixando para este Tribunal as demais questões relacionadas com os factos e as provas. Desta forma, este parecer analisará apenas a pretensa inconstitucionalidade e/ou ilegalidade do Regulamento Camarário que aprova a taxa turística e a taxa de alojamento no Município de Lisboa. 

A) DA DISTINÇÃO ENTRE TAXA E IMPOSTO

Sendo certo que, quer o autor quer o réu, já analisaram pormenorizadamente o conceito de taxa e imposto e o limite que as distingue, cumpre-nos apenas tirar as ilações sobre os conceitos, do ponto de vista especifico da análise deste Regulamento. 
Assim sendo, é nosso entendimento que não releva para auferir da validade do regulamento camarário se Feliciano, ou qualquer outro cidadão em situação idêntica, usufruiu, no caso concreto, das infra-estruturas e serviços que foram postos à sua disposição. 
O art.4º da LGT estabelece que a existência de uma taxa implica um sinalagma, assenta “na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”. No mesmo sentido, o artigo 3º da LRGTAL reforça que “as taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei”. 
Mas o facto de, no caso, ele não ter aproveitado do serviço que estava à sua disposição, não significa que ele não o pudesse fazer, se assim o entendesse. 
Uma prestação como sendo uma estrada ou a segurança pública não pode estar condicionada à vontade do potencial utilizador de querer usufruir. São serviços necessários à comunidade e a partir do momento em que existem e estão à disposição, o pressuposto que cria o sinalagma está preenchido. 
Para mais, (ainda que considerando que, quer o edifício quer o terreno onde está sediado, pertencem ao Estado Português) no momento em que sai do Aeroporto da Portela está necessariamente no município de Lisboa e portanto é um potencial utilizador das estruturas que o município oferece, mesmo que nele não permaneça.
Não se apresentam por isso dúvidas quanto ao caracter sinalagmático destas taxas. 

B) DO PROCESSO DE COBRANÇA E LIQUIDAÇÃO DA TAXA

Por outro lado, importa analisar quem tem legitimidade activa e se pode existir um fenómeno de representação quanto ao sujeito activo da relação tributária e administrativa. 
Por razões que não cumpre aqui discorrer, o legislador optou por não criar, na Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro que cria o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (LRGTAL), qualquer disposição expressa sobre o fenómeno da liquidação por terceiro ou liquidação em substituição. Apesar disso, o costume administrativo vem comprovando a proliferação desse fenómeno, por razões de practicidade e de boa cobrança. 
Não havendo qualquer disposição expressa nesse sentido, aplicamos subsidiariamente o Código de Procedimento e Processo Tributário, por remissão da alínea e) do artigo 2º da LRGTAL. 
Artigo 51.º
Contratação de outras entidades
1 - A administração tributária pode, nos termos da lei e no âmbito das suas competências, contratar o serviço de quaisquer outras entidades para a colaboração em operações de entrega e recepção de declarações ou outros documentos ou de processamento da liquidação ou cobrança das obrigações tributárias. 
2 - A administração tributária pode igualmente, nos termos da lei, celebrar protocolos com entidades públicas e privadas com vista à realização das suas atribuições.
3 - Quem, em virtude dos contratos e protocolos referidos nos números anteriores, tomar conhecimento de quaisquer dados relativos à situação tributária dos contribuintes fica igualmente sujeito ao dever de sigilo fiscal.

Ora, pela analise do regime geral, não consideramos existir nenhuma ilegalidade pelo facto de a cobrança e liquidação destas taxas ser feita por meio de outras entidades, quer sejam elas públicas (quando não coincida com o sujeito activo) ou privadas (no caso, ambas privadas: a ANA e os Hóteis de Lisboa). 

C) DA DUPLA TRIBUTAÇÃO 

Importa no entanto analisar a questão que se levanta quanto a uma eventual dupla tributação, por aplicação conjunta da Taxa de Alojamento e Taxa Turística no Município de Lisboa. 
As referidas taxas que se apresentam como sendo de cariz turístico assentam na realização de uma prestação presumida, e não efectiva como seria esperado, a sua estrutura baseia-se na presunção de que qualquer pessoa que chegue ao Município de Lisboa pelo Porto/Cais de Cruzeiros ou Aeroporto de Lisboa e/ou fique hospedado num local suscetível de cobrar a Taxa de Alojamento, irá usufruir, desgastar e aproveitar as infra-estruturas da cidade, nomeadamente estradas, jardins, rede elétrica, de abastecimento e saneamento e transportes públicos.
No entanto, como já referimos, não é exigível para a qualificação de um tributo como taxa a utilização efectiva e imediata da prestação, bastando provar a “possibilidade da sua utilização”. 
No nosso entender o tributo só deve qualificar-se como taxa quando a presunção se baseie num elevado grau de certeza e nos permita concluir que existe aproveitamento efectivo da prestação. Devendo assim qualificar-se como contribuição quando a presunção é de caracter inferior. Neste caso o grau de segurança é relativa, sobre o aproveitamento da prestação, aqui é apenas provável a sua utilização. 
Afigura-se acertado concluir que a utilização e o aproveitamento das infra-estruturas pelos turistas permite, por existir um elevado grau de certeza, a qualificação deste tributo como taxa. 
É de notar que a maioria das taxas exigidas pela administração central e local se baseiam em prestações efectivamente aproveitadas pelo particular, sendo pouco comum assentarem sobre prestações presumidas.
A questão da dupla tributação quanto às taxas turísticas do Município de Lisboa apresenta-se neste processo como uma questão fundamental, devendo ser analisada com o maior dos cuidados. 
Podemos estar perante um caso de dupla tributação pois, por meio da taxa de Alojamento e da taxa turística, o município tributaria duas vezes o mesmo facto tributário, baseando-se em normas de incidência distintas. Acontece que, no caso concreto, o mesmo facto tributário gera a criação de duas taxas (por existirem duas normas de incidência). Existe, neste caso, uma identidade do facto tributário e uma pluralidade de normas tributárias a ele associado.
Levanta-se então o problema da lesão do principio da equivalência (artigo 4º da LRGTAL), pois este não tolera, evidentemente, que uma prestação pública seja exigida ao contribuinte sob a forma de duas taxas, pois na verdade irão pagar duas vezes pelo mesmo benefício ou prestação, obrigando assim os turistas e todas as pessoas que cheguem a Lisboa pelo Aeroporto ou pelo Porto, e que venham a utilizar um qualquer local suscetível de ser cobrada a taxa de alojamento, a pagar duas vezes os mesmos custos que o município utilizou como fundamento para a criação da taxa. 
Finalizando, podemos concluir que a cumulação das duas taxas consubstancia, por si mesma, uma lesão do principio da Equivalência, sendo esse um motivo de ilegalidade do Regulamento Camarário. Certo é que, só haverá ilegalidade quando a um cidadão sejam cobradas simultaneamente as duas taxas, por força de ter chegado ao Município pelo Porto de cruzeiros ou  pelo Aeroporto e quando  se aloje num local suscetível de cobrar a taxa de alojamento.

D) DA COMPETENCIA DO MUNICIPIO QUANTO AO VALOR A COBRAR
Importa analisar a questão da competência do município quanto ao valor cobrado pela taxa.
Primeiramente, debruçar-nos-emos, de forma sumária, sobre a transferência de atribuições e competências para as autarquias locais efectivada com a aprovação da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro.
Actualmente, considera-se já ter sido transferido para os municípios, por parte do legislador, num sentido formal, um amplo conjunto de atribuições.
Com a aprovação da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro [Lei-Quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais (LQTACA)] pretendeu-se, ampliar o âmbito de competências e atribuições das autarquias locais, nomeadamente dos municípios, tendo por base os princípios da descentralização administrativa, da autonomia local (artigo 1º da LQTACA) e da subsidiariedade (artigo 2º, n.º2 da LQTACA). Neste sentido, a Administração Central determina que “as atribuições e competências devem ser exercidas pelo nível de administração melhor posicionado para as prosseguir com racionalidade, eficácia e proximidade aos cidadãos” (artigo 2º, n.º 2 da LQTACA). Tal como enuncia Amaral (2006), “A LQTACA proclama como objectivo geral a concretização dos princípios da descentralização administrativa e da autonomia do poder local (art. 1.º). Em especial visa assegurar o reforço da coesão nacional e da solidariedade inter-regional e promover a eficiência e eficácia da gestão pública, no respeito pelos direitos dos cidadãos (art. 2º , n.º 1).”
Perante a necessidade de fazer face ao número crescente de atribuições que o Estado para si transfere, a administração municipal tem vindo a movimentar uma percentagem cada vez mais significativa do total das finanças públicas, bem como a ser investida em poderes tributários alargados. 
“Assim, nos termos do artigo 4.º, n.º3, estabelece-se uma regra de fixação anual, no Orçamento de Estado, de um montante a acordar entre o Estado e as autarquias, com vista a suportar as despesas geradas pelas transferências de atribuições (…). No sentido de criar condições de adaptação temporal dos municípios (os principais destinatários das transferências) ao crescente quadro de tarefas, a LQTACA avança duas regras: a da transferência progressiva e a do estabelecimento de regimes transitórios nos diplomas concretizadores das transferências (art. 4.º , n.º 1).” Amaral, 2006.

Importa, de seguida, analisar criticamente em sede do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL).
Já aqui referimos e explicámos o princípio da equivalência do artigo 4º de LRGTAL. Não obstante a epígrafe, o corpo do artigo consagra, também, o princípio da equivalência económica, ao qual os municípios e freguesias ficam sujeitos. Ilustrando o exposto, temos o artigo 8.º, n.º 2, alínea c) do presente regime que dispõe que os regulamentos locais que criem taxas devem conter obrigatoriamente, e sob pena de nulidade, a “fundamentação económico-financeira relativa ao valor das taxas, designadamente os custos directos e indirectos, os encargos financeiros, amortizações e futuros investimentos realizados ou a realizar pela autarquia local”. O que significa, portanto, que estes documentos terão de conter e identificar, sob pena de nulidade, os custos que cada taxa se destine a compensar, prevenindo-se com esta medida que os contribuintes sofram de uma dupla tributação, ao serem obrigados a remunerar duas vezes as mesmas prestações. 
Ou seja, no caso concreto, entendemos que o Município tem legitimidade não só de criar a taxa como de cobrar o valor que entender correcto, desde que proporcional e equivalente à prestação fornecida e nos termos da lei.

E) DO PREJUÍZO PARA O TURISMO LISBOETA

Por fim, na óptica da defesa do interesse público, é imperativo analisar também um possível prejuízo quer para o turismo Lisboeta quer para o turismo de Portugal, em geral, pelo papel fundamental que este desempenha na economia Portuguesa e, em paralelo, analisar o beneficio que esta cobrança poderá trazer ao Município. 
Do ponto de vista do turismo, um aumento dos “impostos” pode efectivamente ter como consequência a diminuição da procura turística. 
Em contrapartida, o euro que é cobrado por passageiro converte-se em milhões no fim do ano a favor do sujeito activo. Esse valor acaba por ser fundamental na receita do Município, onde as taxas, especificamente, representam uma fonte importante no orçamento. O aumento da receita do Município, por outro lado, beneficiará os habitantes do município, que poderão ver a sua carga tributária diminuída ou a prestação de serviços melhorada. Deste ponto de vista, até nos parece bastante justa a tributação. 
A solução passa então por pesar os prós e os contras da criação da taxa. 
Por se tratar de um valor baixo (relativamente ao gasto que implica uma viagem de avião ou a estadia num hotel), não parece que esse valor vá trazer uma diminuição significativa da procura turística do país, ou de Lisboa. Ademais, outras capitais Europeias implementaram taxas idênticas, até com valores muito superiores e, da análise dos efeitos, concluiu-se que teve pouca relevância a nível da procura.
Como vimos, o valor cobrado nunca poderá ser superior ao efectivamente prestado mas pode e deve ser inferior quando se tenha em conta outros factores (como seja o prejuízo para o Turismo). Parece-nos que é este o caso. 

Face ao exposto, o Ministério Público considera que existe ilegalidade do Regulamento Camarário por violação do art.4º da LRGTAL, por se prever a cobrança simultânea de duas taxas com base no mesmo facto tributário, constituindo um fenómeno de dupla tributação. 

Os Procuradores da República, 

Carolina Melo
Inês Bom 
Teresa Ramos 

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