As normas que
previam o recurso hierárquico necessário, ou seja, as normas que exigiam, como
condição de acesso dos particulares aos tribunais administrativos no sentido de
impugnar os atos dos subalternos, o esgotamento das vias administrativas sempre
foram alvo de diferentes opiniões e querelas.
Com a reforma do
contencioso estas normas, e logicamente esta figura, passaram a ser
inconstitucionais, com a introdução do que está agora preceituado no artigo
268/4 da Constituição da República Portuguesa. Contudo a nossa lei padece de
alguma incoerência relativamente a esta matéria, sendo que no Código do
Procedimento Administrativo ainda é regulado este instituto, enquanto no Código
do Processo nos Tribunais Administrativos existe um total afastamento desta
figura, manifestando-se expressamente esta falta de referência através de
vários preceitos, nomeadamente: no artigo 51/1, em primeiro lugar, onde são
estabelecidos os critérios que determinam qual o ato administrativo impugnável,
preenchendo os atos dos subalternos estes critérios, podendo portanto, segundo
este artigo, esses mesmos atos ser direta e autonomamente impugnados; em
segundo lugar, através do artigo 59/4, em que é consagrado o efeito suspensivo
do prazo de impugnação contenciosa em caso de utilização das garantias
administrativas e, por último, pelo artigo 59/5 que estatui expressamente que o
particular pode, não obstante poder recorrer a outra via, aceder de imediato
aos tribunais administrativos. Concluir-se-ia da análise destes artigos que o
recurso hierárquico necessário não tem qualquer valor obrigatório, sendo até
que, caso o particular pretenda recorrer ao superior hierárquico em primeiro
lugar, nem sequer terá de esperar pela decisão antes de poder recorrer aos
tribunais, dando-se clara prioridade e prevalecendo o recurso a estes últimos
sobre quaisquer outras vias.
Esta “fuga” por
parte do Código do Processo nos Tribunais Administrativos da figura do recurso
hierárquico necessário afigurar-se-ia um tanto vazia, e não deixa de ser
chocante, quando no Código do Procedimento Administrativo ainda se regula esta
matéria, fazendo-se menção a esta exigência, mais precisamente nos artigos 167º
e 170º,. É por isto que certos professores como os Professores Diogo Freitas do
Amaral e Mário Aroso de Almeida interpretam restritivamente o regime jurídico
deste instituto, defendendo que apenas a regra geral da exigência do recurso
hierárquico foi revogada, sem prejuízo da possibilidade de existirem outras
normas que prevejam especialmente esta obrigatoriedade, podendo apenas ser
afastadas por disposição expressa. Consideramos no entanto, que neste caso a
revogação de uma norma geral conduz à caducidade das normas especiais, não
tendo portanto quaisquer efeitos as normas que considerem o recurso hierárquico
necessário.
Consideramos também
que deve haver, obviamente, uma compatibilização dos dois Códigos, para uma
melhor eficácia de todas as normas, e para que os direitos dos particulares
possam ser, efetivamente, garantidos na sua plenitude!
Antes de estas
normas passarem a ser manifestamente (ou expressamente) inconstitucionais, pela
introdução do nº4 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, havia
já autores, como o Professor Vasco Pereira da Silva, que consideravam o recurso
hierárquico necessário inconstitucional. Este Professor argumentava que a
exigência de se recorrer primeiramente ao superior hierárquico de um subalterno
para impugnar um ato seu em vez de se poder recorrer logo aos tribunais
violava, em primeiro lugar, o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos
particulares (já presente no artigo 268/4 da Constituição), pois ela
contradizia e negava o direito de recurso contencioso, direito este fundamental
para proteger o interesse dos particulares. Invocava, para além disto, que a
obrigatoriedade deste recurso prévio violava o princípio da desconcentração
administrativa, presente no artigo 267/2 da Constituição, princípio este que
estabelece e implica a possibilidade de controlo judicial imediato dos atos dos
subalternos, sempre que estes sejam lesivos. Para além destes, defendia também
que era violado o princípio da efetividade da tutela, consagrado no artigo
268/4, e o princípio da separação de poderes, havendo uma promiscuidade entre a
Administração e a Justiça, proveniente dos traumas da infância do Direito
Administrativo, por se impedir o recurso aos tribunais pelo facto de não se
recorrer a uma garantia administrativa.
Concluímos então
que o legislador, com a reforma, deu razão ao Professor Vasco Pereira da Silva,
mas que continua, infelizmente, a faltar a compatibilização das normas,
necessária à eficácia do Direito e à plena tutela dos particulares.
Gonçalo Cardim - 140111029
Sem comentários:
Enviar um comentário