segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O recurso hierárquico necessário: problema de compatibilização de normas (CPA vs CPTA)

      As normas que previam o recurso hierárquico necessário, ou seja, as normas que exigiam, como condição de acesso dos particulares aos tribunais administrativos no sentido de impugnar os atos dos subalternos, o esgotamento das vias administrativas sempre foram alvo de diferentes opiniões e querelas.
      Com a reforma do contencioso estas normas, e logicamente esta figura, passaram a ser inconstitucionais, com a introdução do que está agora preceituado no artigo 268/4 da Constituição da República Portuguesa. Contudo a nossa lei padece de alguma incoerência relativamente a esta matéria, sendo que no Código do Procedimento Administrativo ainda é regulado este instituto, enquanto no Código do Processo nos Tribunais Administrativos existe um total afastamento desta figura, manifestando-se expressamente esta falta de referência através de vários preceitos, nomeadamente: no artigo 51/1, em primeiro lugar, onde são estabelecidos os critérios que determinam qual o ato administrativo impugnável, preenchendo os atos dos subalternos estes critérios, podendo portanto, segundo este artigo, esses mesmos atos ser direta e autonomamente impugnados; em segundo lugar, através do artigo 59/4, em que é consagrado o efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa em caso de utilização das garantias administrativas e, por último, pelo artigo 59/5 que estatui expressamente que o particular pode, não obstante poder recorrer a outra via, aceder de imediato aos tribunais administrativos. Concluir-se-ia da análise destes artigos que o recurso hierárquico necessário não tem qualquer valor obrigatório, sendo até que, caso o particular pretenda recorrer ao superior hierárquico em primeiro lugar, nem sequer terá de esperar pela decisão antes de poder recorrer aos tribunais, dando-se clara prioridade e prevalecendo o recurso a estes últimos sobre quaisquer outras vias.
      Esta “fuga” por parte do Código do Processo nos Tribunais Administrativos da figura do recurso hierárquico necessário afigurar-se-ia um tanto vazia, e não deixa de ser chocante, quando no Código do Procedimento Administrativo ainda se regula esta matéria, fazendo-se menção a esta exigência, mais precisamente nos artigos 167º e 170º,. É por isto que certos professores como os Professores Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida interpretam restritivamente o regime jurídico deste instituto, defendendo que apenas a regra geral da exigência do recurso hierárquico foi revogada, sem prejuízo da possibilidade de existirem outras normas que prevejam especialmente esta obrigatoriedade, podendo apenas ser afastadas por disposição expressa. Consideramos no entanto, que neste caso a revogação de uma norma geral conduz à caducidade das normas especiais, não tendo portanto quaisquer efeitos as normas que considerem o recurso hierárquico necessário.
      Consideramos também que deve haver, obviamente, uma compatibilização dos dois Códigos, para uma melhor eficácia de todas as normas, e para que os direitos dos particulares possam ser, efetivamente, garantidos na sua plenitude!
      Antes de estas normas passarem a ser manifestamente (ou expressamente) inconstitucionais, pela introdução do nº4 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, havia já autores, como o Professor Vasco Pereira da Silva, que consideravam o recurso hierárquico necessário inconstitucional. Este Professor argumentava que a exigência de se recorrer primeiramente ao superior hierárquico de um subalterno para impugnar um ato seu em vez de se poder recorrer logo aos tribunais violava, em primeiro lugar, o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (já presente no artigo 268/4 da Constituição), pois ela contradizia e negava o direito de recurso contencioso, direito este fundamental para proteger o interesse dos particulares. Invocava, para além disto, que a obrigatoriedade deste recurso prévio violava o princípio da desconcentração administrativa, presente no artigo 267/2 da Constituição, princípio este que estabelece e implica a possibilidade de controlo judicial imediato dos atos dos subalternos, sempre que estes sejam lesivos. Para além destes, defendia também que era violado o princípio da efetividade da tutela, consagrado no artigo 268/4, e o princípio da separação de poderes, havendo uma promiscuidade entre a Administração e a Justiça, proveniente dos traumas da infância do Direito Administrativo, por se impedir o recurso aos tribunais pelo facto de não se recorrer a uma garantia administrativa.

      Concluímos então que o legislador, com a reforma, deu razão ao Professor Vasco Pereira da Silva, mas que continua, infelizmente, a faltar a compatibilização das normas, necessária à eficácia do Direito e à plena tutela dos particulares.

Gonçalo Cardim - 140111029

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