terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Superação do entendimento do conceito de Contratação Pública

O Código da Contratação Pública de 2008 afastou a ideia que se tinha acerca dos contratos administrativos. Esta figura, do contrato administrativo, nunca foi olhada com bons olhos por grande parte dos autores, tendo sido sempre olhada como uma realidade esquizofrénica desde as origens históricas da ideia.
Fazendo jus a este pensamento, não se admitia, obviamente, a contratação administrativa. Contradizia, alegavam os críticos, o conceito de jus imperii, poder característico da Administração, que podia impor a sua vontade perante os particulares. Ora, se a Administração tinha este poder, como poderia admitir-se que pudesse haver contratos? Como admitir que a Administração se pusesse, digamos, ao nível dos particulares? Dizia até Otto Mayer que se tratava de um contrassenso absolutamente inadmissível. Esta conceção do contrato administrativo começou a ser abalada no século XIX, quando a Administração começou a celebrar contratos, de concessão de obras públicas maioritariamente, e deixou de ser uma Administração que se centrava unicamente no ato administrativo em si, para passar a ser uma Administração que se abria às relações contratuais, aos regulamentos, a figuras diferentes daquelas a que sempre se dedicou, ocorrendo isto também pelas exigências de modelos diferentes e conceções diferentes do conceito de Estado e da sua função na sociedade.
Começou então a surgir aos poucos a ideia de que era necessário conferir à Administração a liberdade de contratar, de sair do seu mundo de autoridade e de passar a existir muito num sentido, mais do que de exercer a sua autoridade sobre os particulares, de os servir, proteger e colaborar com os mesmos. Decidiu estender-se, portanto, o regime jurídico do ato administrativo ao contrato administrativo, realidade formal que acabou por se materializar na ideia revolucionária de que devia haver determinado contratos que fossem regulados pelo Direito Administrativo e certos contratos que fossem regulados pelo Direito Civil. Esta ideia de separar os dois tipos de contrato proveio do autor Hauriou, que entendia que os contratos consistiam também em privilégios exorbitantes, o que nos parece duvidoso devido à característica da bilateralidade dos contratos e à posição de igualdade característica das relações contratuais. Numa relação contratual não há uma parte em posição privilegiada, e por isso nos parece não razoável a consideração do autor. Contudo, o autor insistia em defender esta tese argumentando que a cláusula geral das relações contratuais rebus sic stantibus permitia a uma parte pôr fim ao contrato em determinados casos, podendo então a Administração punir o particular no caso de este incumprir, mas pecando este argumento naturalmente pelo facto de esta característica ser geral relativamente ao tipo de relação contratual, seja ela privada ou pública.
Apesar deste entendimento de que não há uma parte privilegiada nas relações contratuais, a verdade é que a Administração teve de arranjar mecanismos para se adaptar visto que o interesse público pode alterar-se com o passar do tempo. Esta ideia surgiu com o caso em que a Câmara de Bordéus se viu “presa” a um contrato pelo facto de o mesmo versar sobre iluminação a gás. Quando quis alterar o contrato para poder ter energia elétrica, viu-se vinculada a um contrato de 99 anos. Daqui surgiu o entendimento de que era necessária uma adaptação que variaria conforme o interesse público, sendo este mutável, e que portanto deveria existir um poder de alteração unilateral por parte da Administração, isto porque o objetivo tradicional e até consagrado constitucionalmente dos contratos públicos é o de prosseguir o interesse público.
Apesar disto, chegou uma altura em que esta possibilidade foi criticada no sentido de que ela não proviria de um privilégio exorbitante da Administração, mas sim da lei, e que portanto continuava a defender-se a bilateralidade e a igualdade das partes nas relações contratuais.
Assim começa a alterar-se a ideia que se tinha da contratação administrativa, também com um empurrão significativo de diretivas europeias relativas a esta matéria. Nos anos 90 começou a querer-se uma uniformização da regulação desta matéria na União Europeia, numa lógica de salvaguardar as ideias de liberdade e igualdade entre os Estados-Membros, sendo que, até surgir o Código da Contratação Pública em 2008 várias diretivas uniformizaram este regime.
Assim foi criado o chamado contencioso pré-contratual, adotando-se nessas diretivas uma noção de contrato bastante mais ampla, relativa a todas as relações contratuais, sejam contratos públicos ou privados que correspondam ao exercício da função administrativa.
Assim foi ultrapassada a ideia que se tinha dos contratos administrativos, tendo-se uniformizado o regime jurídico dos contratos que tenham como objetivo o exercício das funções administrativas indo, em certos casos, mais longe que as diretivas europeias anteriormente emitidas.

Gonçalo Cardim - 140111029


Sem comentários:

Enviar um comentário