quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A legitimidade na acção administrativa comum no domínio contratual


No que à especificidade das regras relativas aos pressupostos processuais das acções comuns no domínio da contratação administrativa diz respeito, há que equacionar as questões de legitimidade trazidas à colação pelo artigo 40º do CPTA.

A lógica tradicional encarava a questão da legitimidade de uma óptica exclusivamente bipolar, interpretando de forma restritiva as disposições legislativas que se referiam às partes, e considerando apenas a intervenção judicial dos efectivos contratantes. Esta óptica bipolar estrita foi muito criticada tanto em razão dos respectivos fundamentos como dos resultados práticos a que chegava por parte de certos sectores da doutrina, com particular evidência pela professora Maria João Estorninho, que defendia antes o alargamento da legitimidade no domínio contratual a outros sujeitos lesados, quer na qualidade de terceiros, quer como sujeitos de relações multilaterais.

No entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, independentemente de estar em causa um contrato, um acto ou qualquer outra forma de exercício da actividade administrativa, sempre que os particulares sejam afectados por essa actuação e sejam merecedores de protecção jurídica, não são terceiros em face de uma relação jurídica estabelecida entre outros privados e a AP, mas sim partes de uma relação multilateral, que se considera existente e que abrange as autoridades administrativas, os privados que são destinatários da actuação administrativa, assim como aqueles que são por ela afectados.

O CPTA produz assim uma ruptura com esta perspectiva fechada de entendimento da legitimidade no contencioso contratual da AP, ao alargar os poderes de intervenção no processo não só aos intervenientes do contrato, mas a todos os interessados e até mesmo ao Ministério Público e ao actor popular (art.40º CPTA).

O Código começa por distinguir duas hipóteses: a dos pedidos relativos à interpretação e à validade dos contratos (art.40º/1) e a dos pedidos relativos à respectiva execução (art.40º/2).

No que respeita a pedidos relativos à validade, total ou parcial, dos contratos da função administrativa estabelecem-se as seguintes categorias de sujeitos dotados de legitimidade processual (art.40º/1 CPTA):

1.     Os contraentes;
2.    Todos os particulares susceptíveis de ser lesados nos respectivos direitos pela celebração do contrato;
3.     O Ministério Público;
4.     O actor popular; 
Consagra-se assim uma solução de alargamento da legitimidade a todos os particulares afectados nas suas posições jurídicas subjectivas pelo contrato, concretizando em matéria de contratos administrativos, o princípio da protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares (art.268º/4 CRP). Já não parece ser razoável a opção do legislador de alargar o universo de legitimidade para além da protecção jurídica subjectiva, nomeadamente através da acção popular, admitindo que, mesmo aqueles que não possuam “interesse pessoal na demanda” (art.9º/2 CPTA), possam intervir no contencioso relativo a um contrato da função administrativa. O que está em causa é uma actuação administrativa baseada num negócio jurídico bilateral, em que a produção de efeitos decorre da vontade das partes, e não perante uma relação decorrente de uma actuação unilateral da AP.

A própria noção de contrato parece ser incompatível com a lógica da abertura do processo a quem nada tenha a ver com tal relação jurídica, como é o caso do actor popular, pois não faz sentido considerar que os direitos constituídos pela via contratual são, simultaneamente, relativos e absolutos, decorrentes da vontades das partes e oponíveis erga omnes, integrantes de uma relação criada por sujeitos determinados mas aberta a toda a colectividade.

No que respeita aos pedidos relativos à execução dos contratos da função administrativa, o Código consagrou igualmente uma situação de ampliação da legitimidade (art.40º/2 CPTA), identificando categorias similares de sujeitos, a saber:

1.    os contraentes;
2.  os particulares lesados nos seus direitos pela execução do contrato, quer em razão do respectivo clausulado, quer por terem sido preteridos no procedimento prévio;
3. o Ministério Público, mas apenas quando estiver em causa um interesse público especialmente relevante;
4.    o actor popular; 
O legislador chega ao mesmo resultado de considerar que para além dos contraentes, gozam também de legitimidade outros particulares afectados pela relação contratual, assim como o actor público e o actor popular. Os critérios de aferição da legitimidade para o MP parecem contudo ser mais exigentes dos que o do actor popular, já que só se permite a intervenção do primeiro em caso de interesse público especialmente relevante, o que não se exige no segundo caso. Por um lado, os interesses de defesa da legalidade e do interesse público, que tanto o MP como o actor popular prosseguem, mediante o direito de acção em juízo, em geral, revestem-se sempre de especial relevância – pois, estão em causa valores e bens constitucionalmente protegidos como resulta do art.9º/2 CPTA -, não se percebendo porque é que em matéria de contratos tal relevância deveria ser ainda mais especial. Ainda mais tratando-se o primeiro de um organismo estadual, a quem está cometida a tarefa de zelar, a titulo institucional, pela defesa da legalidade e do interesse público (art.219º CRP).

Esta introdução não apenas implica um alargamento desmesurado da legitimidade, dado que admite a intervenção de quem não possua qualquer interesse pessoal na demanda, o que é contraditório com a natureza da relação contratual controvertida; como também regula esse alargamento objectivo de forma incorrecta pois ele deveria realizar-se antes através do mecanismo da acção pública e não do da acção popular.

Especifica do contencioso contratual é também a regra do pressuposto processual da oportunidade. Enquanto a acção administrativa comum, em geral, não está sujeita a qualquer prazo (art.41º/1 CPTA), já no que respeita à impugnação de contratos da função administrativa existe uma regra especial, segundo a qual os pedidos de anulação, total ou parcial, de contratos podem ser deduzidos no prazo de 6 meses contados da data da celebração do contrato, ou, quanto a terceiros, do conhecimento do seu clausulado (art.41º/2 CPTA). O fundamento da regra parece ser o da criação de um paralelismo entre a regulação aplicável à impugnação de actos e à impugnação de contratos, mas é duvidosa esta asserção, dado que as exigências de estabilidade e da tutela da confiança dos particulares, que justificam os prazos para reagir contra as actuações unilaterais, não se colocam da mesma maneira perante um negócio jurídico bilateral, em que a produção de efeitos decorre do próprio acordo de vontades entre as partes.

É necessário interpretar a previsão de tais prazos de forma restritiva, nomeadamente não a alargando aos pedidos de condenação, que devem poder ser propostos a todo o tempo, da mesma maneira que se deve considerar que aqueles não possuem qualquer efeito preclusivo do julgamento futuro das relações contratuais, aplicando aqui, por analogia, o regime previsto, no art.38º CPTA, sob pena de se estar a criar um regime de inimpugnabilidade mais gravoso para os contratos da função administrativa do que para os actos administrativos.

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