terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Acção comum e acção especial - o fim da esquizofrenia com a reforma da reforma


A acção administrativa comum vem prevista nos artigos 37º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (adiante CPTA).

Há um critério declarado neste artigo 37º, um critério meramente processual que tem a ver com o modo como o legislador regulou este meio processual. Na prática, se compararmos o art. 37º do CPTA com o art. 46º do CPTA vemos que o critério tem a ver com as formas de actuação administrativa. Não é um critério processual mas sim substantivo. Tudo o que disser respeito a acto administrativo e a regulamento cabe no âmbito da acção administrativa especial. Isto significa que cabem na acção administrativa comum o contencioso (pedidos de simples apreciação, constitutivos e condenação) relativo a contratos públicos, actuações administrativas informais, actuações técnicas, operações de direito privado e operações materiais. Esse é o critério que norteia o legislador mesmo que haja alguns problemas no quadro da limitação exacta dos dois meios processuais.

Para além de o nome ser inadequado, já sabemos que acção comum no Contencioso Admnistrativo é aquela a que o legislador chamou acção especial. A norma do art. 5º do CPTA, quando um litígio possa cair na acção especial ou comum determina que vá cair na acção especial.

Isto dito, há problemas de delimitação no quadro destes critérios que ainda por cima não são enunciados claramente. O problema deriva do facto de o legislador ter arrumado mal alguns pedidos. Seria lógico que o legislador incluisse no quadro da acção legislativa especial as situações da alínea c) do nº 2 do art. 37º CPTA. A não emissão de um acto administrativo é algo que em rigor devia estar no âmbito da acção administrativa especial. Estes mecanismos de condenação são muito necesários e muito úteis.

O professor Vasco Pereira da Silva já desde os anos 80 defende que no direito português existam estes mecanismos preventivos. Estas situações destinadas à não emissão de um acto administrativo enquadram-se nesta realidade de um contencioso que tem esta dimensão de prevenção, são necessárias mas estão mal arrumadas.

Depois há um problema que resulta da interpretação a dar a determinadas formulações que o legislador utiliza designadamente no art. 37º CPTA. Isto aparece nas alíneas a) e e). A questão tem a ver com a noção de acto administrativo que a ordem jurídica estabelece. Essa é uma noção substantiva e resulta do art. 120º do Código de Procedimento Administrativo, que estabelece que qualquer actuação administrativa individual e concreta destinada a produzir efeitos é um acto administrativo. Isto significa, na opinião do professor Vasco Pereira da Silva, que o legislador adoptou uma noção ampla de acto administrativo e afastou as noções restritivas de acto administrativo. Essa, no entanto é a opinião do professor Sérvulo Correia, do professor Mário Aroso, de uma tendência que corresponde à escola de Coimbra.

No entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, se estamos perante um acto administrativo o meio adequado é a acção administrativa especial. O que cabe aqui nesta fórmula são aquelas realidades similares ao acto mas que não são acto. São actuações informais da administração, actuações de carácter técnico, actuações de direito privado que não produzem directamente efeitos jurídicos na esfera do particular. São as operações materiais e realidades desse género. É a estas situações que o legislador se refere quando fala em actos jurídicos. A expressão não é a mais adequada e não faz sentido adoptar aqui. Nas palavras do professor Vasco Pereira da Silva, estamos a adoptar as dores de alma do Direito Alemão sem razão para isso. Isto porque no Direito Alemão há um conceito restrito de acto e, como é assim, a doutrina teorizou outras formas de actuação e em relação a essas há umas que considera como quase actos administrativos e outras que considera como actuações materiais. Este é um problema alemão. Mas não é um problema português porque o nosso código adopta uma noção ampla. Há um problema alemão, e por isso a doutrina e jurisprudência considera que há uma categoria de quase actos, mas se é assim, isso não existe em Portugal e portanto na perspectiva do professor Vasco Pereira da Silva não o devemos criar de forma artificial. De facto, não há que introduzir elementos espúrios e, portanto, quando o legislador fala em actos jurídicos ele não está a pensar em actos administrativos. O problema é meramente linguístico porque o próprio professor Mário Aroso não interpreta estas normas como referentes a actos administrativos.

Um acto administrativo é o acto que determina o pagamento de uma bolsa, ou de um subsídio, por exemplo. Uma coisa é o acto administrativo que determina o pagamento desse benefício material, outra coisa é a execução desse acto administrativo. No âmbito da execução colocam-se problemas de aplicação do acto administrativo à acção de facto e é a propósito disso que se pode usar a acção administrativa especial. Para obter a execução o particular pode utilizar este mecanismo relativo ao pagamento de quantias. Por outro lado esta questão só pode colocar alguns problemas em relação a situações limite.
Olhando para estas normas, há ainda um outro problema de delimitação: é o que corresponde ao art. 38º CPTA.

O art. 38º CPTA vem admitir que, se um acto administrativo se tornou inimpugnável, na medida em que o acto seja ilegal, a acção administrativa comum possa conhecer da validade do acto e julgue a posição do particular em relação a essa situação. Trata-se de uma apreciação a título incidental. O legislador quis que o julgador fosse conhecer incidentalmente da validade para discutir da aplicabilidade dos respectivos efeitos jurídicos. Nesta perspertiva ainda cabe no âmbito da acção administrativa comum. O professor Vasco Pereira da Silva diria que estamos perante um limite e arrumaria esta situação na acção administrativa especial. Contudo, compreende que o legislador tenha estabelecido esta distinção consoante esteja em causa a apreciação directa da validade de um acto administrativo (Acção especial) dos casos diferentes em que o legislador vai conhecer do acto apenas a título incidental (Acção comum).

Toda esta esquizofrenia é resolvida na reforma da reforma. Neste projecto de reforma do CPTA que está a ser discutido o legislador põe fim a esta realidade esquizofrénica e estabelece uma única acção com vários pedidos nos quais cabem os pedidos que podem ser tutelados através da acção comum e os que podem ser tutelados através da acção especial. 

Conforme é dito no preâmbulo do Projecto, “os aspectos mais significativos da presente revisão do CPTA dizem respeito à estrutura das formas do processo e respectivo regime.
Com efeito, o CPTA, no respeito pela tradição mais recente do contencioso administrativo português, assente na contraposição entre o recurso contencioso e o processo declarativo comum do CPC, tradicionalmente seguido no contencioso das acções, optou por estruturar os processos declarativos não urgentes sobre um modelo dualista, de acordo com o qual, para além dos tipos circunscritos de situações de urgência, objecto de regulação própria, as causas deviam ser objecto da acção administrativa especial ou da acção administrativa comum, consoante, no essencial, se reportassem ou não a actos administrativos ou normas regulamentares”. 

Porém, mesmo que partindo deste princípio, o certo é que a acção administrativa especial, “mais do que a sucessora do anterior recurso contencioso, foi configurada como uma forma de processo primacialmente direccionada a harmonizar o modelo do CPC às especificidades próprias do processo administrativo.”

E, nesse pressuposto, aceita‐se que “uma forma de processo com estas características é suficiente, sem necessidade de um modelo dualista, para dar resposta a todos os processos declarativos não urgentes do contencioso administrativo”, podendo justificar‐se, do ponto de vista da praticabilidade do sistema, submeter todos os processos não urgentes do contencioso administrativo a um único modelo de tramitação, que corresponda, em termos gerais, ao da anterior acção administrativa especial.*



* in Parecer do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais sobre o Projecto de Revisão do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Rita Pereira de Abreu
140111082

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