sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Defesa de Direitos - Procedimento e Contencioso




O Direito Administrativo durante a sua “conturbada infância”, viu os seus administrados sofrerem de “violência doméstica”, e dada a sua incapacidade genérica de reacção nada puderam contra esses abusos: eram súbditos. Com o passar do tempo, e com o seu crescimento e desenvolvimento, a Administração, mais, ou menos tardiamente, dependendo dos casos, soube reconhecer que não podia continuar a intervir somente como “pai tirano” ou, quem sabe, “padrasto-tirano”: dando castigos e punindo de forma arbitrária. Com o passar do tempo, a paternal Administração, foi-se tornando mais maternal, que é como quem diz, começou a tratar os administrados de uma forma mais “querida”. Neste sentido, soube reconhecer verdadeiros direitos subjectivos aos particulares. No entanto, a doutrina diverge quanto à visão do que são os direitos particulares, havendo quem discorde desta posição de que são direitos subjectivos, pondo-os ao lado dos “interesses legítimos” e dos “interesses difusos”. A esta ideia de direitos tripartidos, contrapõe-se, fundamentalmente, uma visão unitária, já referida. Cumpre, no entanto, desde já deixar claro que a ambas as posições se aplica o mesmo regime.

A relação entre administrantes e administrados parte das relações jurídicas que se estabelecem entre ambas as partes. É o reconhecimento de direitos subjectivos que permite aos administrados a sua transformação em sujeitos de direito, capazes de estabelecer relações jurídicas com os órgãos administrantes. É, pois, o reconhecimento destes direitos às pessoas dos administrados que os eleva à condição de “cidadãos”, deixando a mera condição de objectos da poderosa administração. Este reconhecimento implica, portanto, o estabelecimento de um equilíbrio nas relações cidadão-Administração, relacionando-se em condições de igualdade. É esta transformação, operada por força do reconhecimento dos direitos fundamentais, que vai reconhecer ao cidadão, até aí “súbdito”, personalidade jurídica. O reconhecimento desta dignidade a todos os cidadãos, permitir-lhes-á concorrer em relações jurídicas de igualdade, e já não em relações de supra-infra ordenação. É verdadeira a afirmação de que “é o reconhecimento de direitos subjectivos que faz do individuo um sujeito de direito autónomo e não “uma simples peça da engrenagem estadual””. Realmente, embora esta concepção nem sempre tenha dominado, é hoje comummente aceite a dignidade e a personalidade jurídica das pessoas no nosso ordenamento jurídico. De facto, esta dignidade da pessoa humana projecta-se no reconhecimento da titularidade de direitos subjectivos, constituindo um dos princípios que caracterizam o Estado de Direito. Esta consagração de direitos tem consequências várias no âmbito do Direito Administrativo , nomeadamente no campo do procedimento e do processo.

O procedimento:

As alterações produzidas no campo do procedimento permitem a realização dos direitos fundamentais, nomeadamente através da tutela preventiva dos direitos dos particulares perante a Administração. O procedimento é, pois, um meio de conciliação dos interesses do Estado, executados através da Administração, com os interesses de cada indivíduo. Neste sentido se exige este seja chamado a pronunciar-se caso a actuação da Administração possa por em causa os seus direitos fundamentais. Neste sentido se fala na garantia que o procedimento constitui face aos interesses dos particulares. A relevância dos direitos fundamentais no procedimento é de tal forma, que vinculam, inclusivamente, o legislador (para não falar da Administração), que está obrigado a garantir a constituição de um procedimento que efective os direitos fundamentais.

O contencioso:

Ao contencioso cabe assegurar a tutela efectiva dos direitos, assim como a equiparação entre as posições dos particulares e da Administração. Preside aqui a ideia de que tanto um órgão administrativo público como um cidadão se encontram, de igual forma, “limitados pelo tribunal, no qual devem defender as suas posições jurídicas” (Maurer).

De facto, como afirma o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva, para além da posição pelo mesmo defendida, no que diz respeito à forma de conceber as posições dos indivíduos perante a Administração, existem visões distintas em relação ao mesmo assunto. Defende, o mesmo Professor, que existem “seis principais concepções quanto ao modo de conceber essas posições de vantagem dos particulares em relação à Administração”. Podem essas diferentes posições ser configurar-se, na sua opinião como:

1)      “Uma situação de interesse de facto que confere aos indivíduos legitimidade processual, uma vez que possuem um “interesse próximo do da Administração””. Esta posição, defendida por Laferrière, entre outros, parte do princípio de que os particulares não defendem de maneira nenhuma a sua posição jurídica subjectiva perante a Administração.

2)      “Um “direito à legalidade” (…) que os indivíduos fazem valer no processo”, mas de que não são titulares enquanto pessoas. Posição defendida no nosso país pelo Professor Marcello Caetano.

3)      Existindo duas modalidades de posições distintas: 1- direitos subjectivos; a par com: 2- interesses legítimos; esta distinção operar-se-ia consoante o poder de vantagem do indivíduo resultasse imediata e intencionalmente das normas jurídicas, ou por outro lado, fosse atribuído apenas de forma mediata e reflexa. É esta posição defendida entre nós pelo Professor Freitas do Amaral.

4)      Dois direitos que se distinguem, tratando-se, ou não, de uma situação dependente do exercício do poder administrativo. Posição defendida por Rui Machete.

5)      A posição defendida por outros que distingue duas situações diferentes: dos direitos subjectivos “clássicos”, e a dos direitos subjectivos “novos”.

6)      Uma posição unitária no que diz respeito à categorização de situações jurídicas dos particulares, que é a dos direitos subjectivos.

Numa breve análise destas várias posições, há que referir que as duas primeiras não encontram possível defesa em face da actual realidade jurídico-constitucional. Estas reconduzem-se à “Administração-Leviathan”, modelo já abandonado, por tender à negação da existência dos direitos subjectivos no domínio das relações administrativas. Esta perspectiva encontra-se totalmente apartada da realidade actual, por ser incompatível com o reconhecimento pela lei fundamental da personalidade jurídica de cada individuo.

Ainda no que diz respeito à posição defendida pelo Professor Freitas do Amaral (3ª), este afirma a diferença de regimes, e que isso justiça na prática a distinção feita entre direitos subjectivos e interesses legítimos. Encara o expressão constitucional “interesses legalmente protegidos” como “interesses legítimos”, que ao contrário dos direitos subjectivos gozam de mera protecção mediata. Para além deste, o Professor Freitas do Amaral vê também “interesses difusos”, que não pertencem a indivíduos individualmente considerados, mas a grupos mais vastos de pessoas. O Professor Vasco Pereira da Silva contrapõe com a afirmação de que a distinção se concentra na amplitude do conteúdo do direito e não na sua própria existência, como se verá.

Quanto às demais posições referidas, embora sendo compatíveis com a actual ordem jurídico-constitucional dos modernos Estados de Direito, não são totalmente adequadas. O Professor Vasco Pereira da Silva perfilha a solução que trata as posições jurídicas dos indivíduos, face à Administração, de forma unitária. Considera-se, pois, o particular como titular de verdadeiros direitos subjectivos extensíveis às suas relações jurídicas administrativas.

Nos termos da “teoria da norma de protecção”, que deve, seguindo a opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, ser alargada ao domínio dos direitos fundamentais. Assim, o individuo é titular de um direito subjectivo em relação à Administração, “sempre que de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público, mas também a protecção dos interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva, concedida de um mero benefício de facto decorrente de um direito fundamental”.

Alguns argumentos sustêm esta posição:

1-      Não parecem restar dúvidas que a referência a “direitos e interesses legalmente protegidos” (cfr. Art. 268/3,4,5 da CRP), possa significar outra coisa que não “direitos subjectivos”, susceptíveis de recurso contencioso. A constituição, sem dúvida, dá o mesmo valor aos “direitos subjectivos” e a “interesses legalmente protegidos”, tratando-os, no dizer do Professor Vasco Pereira da Silva, como “situações jurídico-materiais dos indivíduos”. Estes direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos deverão ser reconduzidos à categoria unitária dos direitos subjectivos, não constituindo qualquer ataque às disposições ou espírito constitucional.

2-      Não tem justificação teórica, nem suporte legal qualquer distinção entre direitos de “primeira categoria” e “direitos de “segunda categoria”, como pretenderão alguns. Tratar-se-á de posições substantivas e não meramente processuais dos particulares em relação à Administração, sendo estas posições concedidas por uma norma visando para além do interesse público, o interesse dos particulares. A diferença entre ambos não diz respeito à sua existência, mas à amplitude do seu conteúdo.

3-      Os direitos dos particulares, para além de um conteúdo, que pode ser mais ou menos amplo, podem, também, corresponder a diferentes categorias. Tudo depende da concreta relação jurídico-administrativa, estabelecida entre particulares e a Administração e da interpretação das normas aplicáveis (podendo ser atribuído um direito subjectivo directamente, ou de forma indirecta, através do estabelecimento de um dever).

4-      O ordenamento jurídico português não diferencia expressamente o tratamento material a dar aos direitos subjectivos e aos interesses legítimos, em vez disso, associando-os (cfr. Art. 268/3,4,5 CRP). Para além disso, é raro na lei que a enunciação das duas designações não seja cumulativa, ainda que com recurso a expressões de carácter genérico (ex.: “direitos, liberdades e garantias”), que devem ser entendidas como direitos subjectivos.

Em conclusão:

Na relação entre direitos subjectivos dos particulares e a Administração, podemos estar perante várias modalidades de direitos subjectivos, no entanto, estamos perante verdadeiros direitos subjectivos: “posições jurídicas de vantagem dos particulares em face das autoridades administrativas”, só diretsubjectivos (concepção unitária), e não qualquer outra figura mais ou menos rebuscada que algumas considerações doutrinais consideram apropriadas. A questão, no fundo, resume-se a saber se onde a lei não complica, a doutrina pode vir complicar… e no final de contas para que? – se o regime a aplicar é o mesmíssimo.

Rodrigo Lobo Machado, 140111033

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