terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A esquizofrenia no contencioso administrativo contratual

Resultante da evolução de uma noção processual do conceito de contrato público para a sua substantizavação, surge toda uma doutrina da contratação administrativa marcada pela fragmentação da “imagem do corpo”: procura-se, por um lado, justificar a divisão esquizofrénica do universo contratual, distinguindo os contratos administrativos dos contratos de direito privado da Administração, considerando aqueles como correspondentes ao exercício de privilégios exorbitantes ou de poderes especiais da Administração, que exigiam um específico regime jurídico e os estes como simples contratos em que as autoridades administrativas actuavam como simples privado, sendo o seu regime jurídico idêntico ao de qualquer outro contrato. A própria noção de contrato administrativo é vista como um acordo de vontade, como um negócio jurídico bilateral, celebrado entre a Administração e os particulares, e como o exercício dos poderes unilaterais exorbitantes ou autoritários por parte das autoridades públicas.

O contrato administrativo é, pois, um conceito bifronte que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral, consenso de vontades e supremacia de uma parte em face da outra, instrumento de cooperação e mecanismo de sujeição. A separação esquizofrénica entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração tinha consequências de natureza substantiva e processual, considerando-se, do ponto de vista substantivo, exigível a existência de um regime jurídico especial para os contratos administrativos, e um comum aos demais contratos em que interviessem a Administração.

A distinção entre contratos administrativos e os demais proceder-se-ia em razão de critérios autoritários, decorrendo dessa autoridade poderes especiais para a Administração, quer ao nível da interpretação do contrato, quer ao nível da respectiva execução. Do ponto de vista contencioso, a natureza do contrato administrativo implicava que os litígios relativos à sua interpretação, validade ou execução fossem da competência dos tribunais administrativos, enquanto que os contratos de direito privado da Administração eram da competência dos tribunais comuns.

De acordo com a professora Maria João Estorninho, encontra-se cada vez mais generalizada utilização de formas contratuais pela Administração enquanto modo normal de exercício da função, ao lado de uma multiplicidade de outras formas de actuação, o que vai dar origem a um movimento de sentido convergente, através do qual se tem vindo a reconhecer que nem o contrato administrativo é tão exorbitante quanto isso, nem os contratos privados da Administração são exactamente iguais aos celebrados entre particulares, reflectindo desde logo uma eventual aproximação entre todos os contratos da administração. A unidade é então propulsionada não só pela doutrina, como também pelo Direito Europeu, que defende através da construção de um espaço comunitário a existência de regras comuns em matéria de contratação administrativa, resultando daqui o surgimento de múltiplas fontes de Direito Administrativo Europeu, que encontra nas directivas a sua maior Fonte de Direito

No Direito Interno em exclusivo, o CPA regula o contencioso pré-contratual enquanto processo urgente por força dos artigos 100º e ss, para além de consagrar um contencioso de plena jurisdição respeitante aos litígios emergentes das relações contratuais administrativas, seja pela via da acção comum, seja da especial.

A criação de um verdadeiro Direito Europeu de Contratação Pública estabelece as bases gerais dos contratos da função administrativa em todos os países da Europa, tratando-se de um regime jurídico comum europeu, estabelecido para certos tipos de contratos, em razão da sua importância para o exercício da função administrativa e independentemente da respectiva qualificação nacional ou para determinados sectores da actividade, em razão dos fins prosseguidos de modo a poder valer tanto para os ordenamentos dos países de matriz francesa, como os de variante germânica ou ainda para os da “common law”, o que explica que a matéria da contratação pública europeia seja delimitada, sobretudo, com base em critérios materiais relativos à natureza da actividade bem como aos fins prosseguidos.

Para além desta “integração vertical”, decorrente da aplicabilidade das fontes comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada um dos Estados europeus, verifica-se ainda, conforme defende o professor Sabino Cassese, um fenómeno de “integração horizontal”, que consiste na convergência das administrações e das instituições nacionais, pois, a partir do momento em que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que tendam também a convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o direito dos contratos das administrações públicas dos diferentes Estados tenda a convergir para um modelo unitário, afirmando-se por isso que existe cada vez mais uma tendência para a unidade dos contratos que correspondem ao exercício da função administrativa, quer do ponto de vista do direito substantivo, como do procedimental ou processual.

O fenómeno da europeização em Portugal tem sido um importante eixo da transformação do Direito Administrativo português da contratação pública. O movimento unificador da contratação pública ditado pelo Direito Europeu, manifestou-se primeiro na legislação relativa aos procedimentos pré-contratuais e, depois, na legislação do contencioso administrativo, que eliminou, para efeitos processuais, a categoria dos contratos administrativos (artigo 4º, nº1 alínea b), e) e f) do CPTA).


O actual do Código da Contratação Pública (DL nº18/2008 de 29 de Janeiro) trata-se de um meio-termo entre a adopção de um conceito genérico de contrato público, em sentido europeu, e a manutenção da dualidade esquizofrénica originária, estabelecendo o legislado, por um lado (e de forma pioneira no Direito Administrativo nacional), uma disciplina geral completa de todos os contratos em que intervém a administração, ao mesmo tempo que uniformiza e simplifica a tipologia e a tramitação dos procedimentos pré-contratuais e racionaliza o regime material a contratação pública. Por outro lado, o CCP persiste em manter a dualidade conceptual esquizofrénica entre contratos administrativos e outros contratos de administração (artigo 1º, nº1 do CCP), mesmo se a definição do dito contrato administrativo (artigo 1º, nº6) fornece argumentos para o esbatimento das fronteiras conceptuais ao nível da totalidade da contratação pública, assim como alarga o respectivo âmbito, que passa a incluir os contratos de aquisição de locação de bens e aquisição de bens móveis e serviços (artigos 431º, 437º, 450º do CCP).

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