Resultante da evolução de uma noção processual do
conceito de contrato público para a sua substantizavação,
surge toda uma doutrina da contratação administrativa marcada pela fragmentação
da “imagem do corpo”: procura-se, por um lado, justificar a divisão
esquizofrénica do universo contratual, distinguindo os contratos
administrativos dos contratos de direito privado da Administração, considerando
aqueles como correspondentes ao exercício de privilégios exorbitantes ou de
poderes especiais da Administração, que exigiam um específico regime jurídico e
os estes como simples contratos em que as autoridades administrativas actuavam
como simples privado, sendo o seu regime jurídico idêntico ao de qualquer outro
contrato. A própria noção de contrato administrativo é vista como um acordo de
vontade, como um negócio jurídico bilateral, celebrado entre a Administração e
os particulares, e como o exercício dos poderes unilaterais exorbitantes ou
autoritários por parte das autoridades públicas.
O contrato administrativo é, pois, um conceito bifronte
que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral, consenso de vontades
e supremacia de uma parte em face da outra, instrumento de cooperação e mecanismo
de sujeição. A separação esquizofrénica entre contratos
administrativos e contratos de direito privado da Administração tinha
consequências de natureza substantiva e processual, considerando-se, do ponto
de vista substantivo, exigível a existência de um regime jurídico especial para
os contratos administrativos, e um comum aos demais contratos em que
interviessem a Administração.
A distinção entre contratos administrativos e os demais proceder-se-ia
em razão de critérios autoritários, decorrendo dessa autoridade poderes
especiais para a Administração, quer ao nível da interpretação do contrato,
quer ao nível da respectiva execução. Do ponto de vista contencioso, a natureza
do contrato administrativo implicava que os litígios relativos à sua
interpretação, validade ou execução fossem da competência dos tribunais
administrativos, enquanto que os contratos de direito privado da Administração
eram da competência dos tribunais comuns.
De acordo com a professora Maria João Estorninho, encontra-se cada vez mais generalizada utilização de
formas contratuais pela Administração enquanto modo normal de exercício da
função, ao lado de uma multiplicidade de outras formas de actuação, o que vai
dar origem a um movimento de sentido convergente, através do qual se tem vindo
a reconhecer que nem o contrato administrativo é tão exorbitante quanto isso,
nem os contratos privados da Administração são exactamente iguais aos
celebrados entre particulares, reflectindo desde logo uma eventual aproximação
entre todos os contratos da administração. A unidade é então propulsionada não
só pela doutrina, como também pelo Direito Europeu, que defende através da
construção de um espaço comunitário a existência de regras comuns em matéria de
contratação administrativa, resultando daqui o surgimento de múltiplas fontes
de Direito Administrativo Europeu, que encontra nas directivas a sua maior
Fonte de Direito
No Direito Interno em exclusivo, o CPA regula o
contencioso pré-contratual enquanto processo urgente por força dos artigos 100º
e ss, para além de consagrar um contencioso de plena jurisdição respeitante aos
litígios emergentes das relações contratuais administrativas, seja pela via da
acção comum, seja da especial.
A criação de um verdadeiro Direito Europeu de Contratação
Pública estabelece as bases gerais dos contratos da função administrativa em
todos os países da Europa, tratando-se de um regime jurídico comum europeu,
estabelecido para certos tipos de contratos, em razão da sua importância para o
exercício da função administrativa e independentemente da respectiva
qualificação nacional ou para determinados sectores da actividade, em razão dos
fins prosseguidos de modo a poder valer tanto para os ordenamentos dos países
de matriz francesa, como os de variante germânica ou ainda para os da “common
law”, o que explica que a matéria da contratação pública europeia seja
delimitada, sobretudo, com base em critérios materiais relativos à natureza da
actividade bem como aos fins prosseguidos.
Para além desta “integração vertical”, decorrente da
aplicabilidade das fontes comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada
um dos Estados europeus, verifica-se ainda, conforme defende o professor Sabino
Cassese, um fenómeno de “integração horizontal”, que consiste na convergência
das administrações e das instituições nacionais, pois, a partir do momento em
que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que tendam também a
convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o direito dos
contratos das administrações públicas dos diferentes Estados tenda a convergir
para um modelo unitário, afirmando-se por isso que existe cada vez mais uma
tendência para a unidade dos contratos que correspondem ao exercício da função
administrativa, quer do ponto de vista do direito substantivo, como do procedimental
ou processual.
O fenómeno da europeização em Portugal tem sido um
importante eixo da transformação do Direito Administrativo português da
contratação pública. O movimento unificador da contratação pública ditado pelo
Direito Europeu, manifestou-se primeiro na legislação relativa aos
procedimentos pré-contratuais e, depois, na legislação do contencioso
administrativo, que eliminou, para efeitos processuais, a categoria dos
contratos administrativos (artigo 4º, nº1 alínea b), e) e f) do CPTA).
O actual do Código da Contratação Pública (DL nº18/2008
de 29 de Janeiro) trata-se de um meio-termo entre a adopção de um conceito
genérico de contrato público, em sentido europeu, e a manutenção da dualidade
esquizofrénica originária, estabelecendo o legislado, por um lado (e de forma
pioneira no Direito Administrativo nacional), uma disciplina geral completa de
todos os contratos em que intervém a administração, ao mesmo tempo que
uniformiza e simplifica a tipologia e a tramitação dos procedimentos
pré-contratuais e racionaliza o regime material a contratação pública. Por
outro lado, o CCP persiste em manter a dualidade conceptual esquizofrénica
entre contratos administrativos e outros contratos de administração (artigo 1º,
nº1 do CCP), mesmo se a definição do dito contrato administrativo (artigo 1º,
nº6) fornece argumentos para o esbatimento das fronteiras conceptuais ao nível
da totalidade da contratação pública, assim como alarga o respectivo âmbito,
que passa a incluir os contratos de aquisição de locação de bens e aquisição de
bens móveis e serviços (artigos 431º, 437º, 450º do CCP).
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