-Considerações sobre a responsabilidade civil
da Administração Portuguesa-
Um dos grandes traumas de infância do Contencioso Administrativo
provém do famoso caso de Agnés Blanco, marcado por uma lógica de poder e
desigualdade.
Agnés Blanco era uma criança de 5 anos que foi atropelada por
um vagão de uma empresa de tabaco em Bordéus. Estava Agnés a brincar numa zona
em que existia uma linha de comboios, e em que não era suposto haver o
cruzamento de qualquer vagão, quando ocorreu um descarrilamento, no qual a
criança foi atingida. Do acidente, Agnés foi afectada na sua integridade
física, sofrendo lesões corporais graves.
Na sequência deste acontecimento, os pais da criança dirigiram-se
aos tribunais de Bordéus, que, contudo, se disse incompetente por estar em
causa uma empresa pública. Acrescentou o Tribunal que, mesmo que pudesse
decidir, não havia lei aplicável, pois o Code
de Napoleon apenas se aplicava em situações entre iguais, e a Administração
não era um igual.
Seguidamente, o Mére du
Corege toma decisão idêntica, e será apenas o Tribunal seguinte, em 1872, a
resolver este litígio. Na sua pronúncia, refere não haver lei aplicável, sendo
por isso necessário criar um ramo de direito novo e autónomo para proteger a Administração.
Esta será a primeira vez que um tribunal vai reconhecer a necessidade de
autonomia científica do direito administrativo, que é, contudo, afirmada para
negar uma indemnização a uma criança de 5 anos. Este é um trauma que, como
veremos, ainda hoje marca a história da responsabilidade civil administrativa.
Em Portugal, até à Reforma do Contencioso, discutia-se qual o
tribunal competente em matéria de responsabilidade civil quando esta envolvesse
a Administração.
Distinguia-se, nomeadamente, consoante estivesse em causa um
acto de gestão pública, onde era aplicável o direito público, e situações de
gestão privada, a que seriam aplicáveis normas do direito civil, onde seriam
competentes os tribunais civis.
Esta esquizofrenia era ainda mais grave devido à falta de
critérios para se dizer que determinados actos eram de poder, enquanto outros
não eram. Perante este problema, a doutrina e jurisprudência tentavam procurar
critérios práticos para proceder às distinções. Exemplificando, num acidente de viação em que
um carro de um Ministro atropela uma criança na Avenida da Liberdade, entendia
a jurisprudência que, para saber se o acto era administrativo ou não, era
necessário determinar se aquele acto era de gestão pública ou privada.
Entendia-se que, se o Ministro estivesse presente no carro, o acto seria
público. Por outro lado, se não estivesse, seria privado.
Ora, sucede que a questão de responsabilidade civil que se
levanta é exactamente a mesma, quer o Ministro esteja presente no carro, quer
não, e por isso a distinção não faz qualquer sentido sentido. Aliás, para além
de ser ilógica, gera uma esquizofrenia indesejável.
Tendo esse fenómeno em mente, o legislador quis pôr termo a
esta confusão legislativa, o que deu origem à Lei da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas de Direito Público (Lei n.º67/2007,
de 31 de Dezembro), na qual se determina que, independentemente de existir uma
dualidade em termos legislativos, a dualidade jurisdicional termina.
A mesma intenção encontra-se expressa na formulação do art.4º
do Estatuto, designadamente das al. g), h) e i), que estabeleceu um sistema que
se pretendia unificado e de maior amplitude.
Desde logo, alarga-se a responsabilidade civil extracontratual
ao domínio da função administrativa, política e jurisdicional. Foi então
introduzido um alargamento que vai além daquele que é o universo da jurisdição,
uma vez quea função política e jurisdicional não são realidades do domínio do
direito Administrativo. No entanto, e no entendimento do Prof. Rui Medeiros, tal
unificação justifica-se pois, apesar de não estarmos perante a mesma função,
estamos sempre perante uma responsabilidade pública que, segundo esta
perspectiva, deveria conduzir a uma unidade, não só jurisprudencial, como
também legislativa.
Mas o legislador não se fica por aqui, tendo procurado alargar
o regime da responsabilidade civil, não apenas aos órgãos administrativos
propriamente ditos, mas incluindo tudo o que esteja relacionado com relações
inter e intra orgânicas.
Por último, este art.4º, ainda numa lógica de alargamento,
acrescenta que este regime público da responsabilidade civil pública se aplica
não apenas no quadro de relações entre um particular e órgãos administrativos,
mas pode ter lugar no âmbito da actuação de sujeitos privados, que actuam no
quadro do exercício da função administrativa.
Não obstante esta ampla perspectiva adoptada pelo legislador,
continuam a existir algumas suas formulações que geram algumas dúvidas. Tomando
um exemplo, uma das questões é a de saber se a referida aplicabilidade do
regime aos sujeitos privados resulta imediatamente desta norma, regime
processual, ou se está dependente de norma posterior.
Ou seja, o principal problema é o de, não obstante a intenção
do legislador de pôr termo às esquizofrenias, a fórmula por ele utilizada não
foi suficientemente feliz, fazendo surgir diversas questões relativamente à
interpretação das suas normas. Ora, o legislador quis que não houvesse dúvidas
que todas as relações que têm a ver com o exercício da função Administrativa
caíssem no contencioso Administrativo, daí que, na melhor das suas intenções,
utilizou a expressão “quando haja lugar”.
Acontece que os Tribunais vieram interpretar o uso dessa expressar no sentido
de que tal só aconteceria quando fosse determinada a existência de uma
responsabilidade pública.
Também a realidade de situações de conculpabilidade introduziu
uma brecha no sistema que levou a que, em caso de dúvida, o juiz remetesse os
casos para os tribunais judiciais. Nesta nossa história, se repetíssemos a situação
de Agnés Blanco já depois da Reforma, ainda encontraríamos este primeiro
problema da dúvida quanto ao tribunal competente, se houvesse uma dessas
situações de conculpabilidade ou culpa exclusiva da vítima.
O resultado da tentativa de unificação diminuiu os casos em
que tal se verificava, mas não os eliminou de forma total, e a dúvida
continuava a colocar-se.
Tudo visto, parece contudo que não há razão para que a dúvida
subsista. Desde logo, como já foi referido, estamos em todo o caso a
referir-nos a uma mesma relação, uma mesma realidade jurídica. Se, continuando
com o exemplo dado no início desta dissertação, há um automóvel da
Administração Pública que atropela um particular, é indiferente saber como se
distribui a culpa. Tanto existe a relação jurídica administrativa numa situação
ou na outra, e por isso não faz sentido estar a qualificar a situação de forma
diferente.
Mas mais, é de considerar que a questão da determinação da
competência do tribunal não pode depender da solução a dar ao caso. A questão
de saber qual é a jurisdição competente é uma questão prévia, é um pressuposto
processual. Não faz por isso sentido condicionar a resolução de uma questão que
corresponde ao pressuposto processual ao resultado final do litígio.
Se isto não bastasse, havia a considerar aquela que foi a
intenção do legislador de pôr termo à esquizofrenia e regular, em termos
unitários, o universo da competência da responsabilidade civil pública. Esta
orientação jurisprudencial é ilógica, irracional, e contraria aquilo que é a
realidade portuguesa.
Melhor solução seria a de interpretar de forma correctiva
aquilo que o legislador disse, uma vez que aplicabilidade dos princípios
permite a construção unitária do regime da responsabilidade civil pública.
Todavia, é de notar um possível problema deste regime
unitário. É que, em abstracto, a ideia de unificação da responsabilidade civil
por actos da função administrativa, política e jurisdicional, faz com que o
juiz administrativo tenha de pensar duas vezes antes de condenar a Administração
ao pagamento de uma indemnização, uma vez que está também preocupado com as
consequências dos seus actos. Dizia já o Prof. Marcelo Caetano que quando o
juiz condena a Administração ao pagamento de uma indemnização, condena-se a si
mesmo.
Olhando de um modo geral para o regime hoje assente, certo é
que, além da dualidade esquizofrénica que ainda se mantinha, ainda que mais
acumulada do que anteriormente, continua a haver a dualidade quanto ao direito
aplicável.
Concluímos então por constatar que esta realidade
esquizofrénica continua mesmo após a aprovação da lei substantiva, e que Agnés
Blancó é ainda um fantasma do presente.
Inês Metello - 140111090
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