domingo, 14 de dezembro de 2014

O Fantasma Presente da Responsabilidade Civil

-Considerações sobre a responsabilidade civil da Administração Portuguesa-

Um dos grandes traumas de infância do Contencioso Administrativo provém do famoso caso de Agnés Blanco, marcado por uma lógica de poder e desigualdade.
Agnés Blanco era uma criança de 5 anos que foi atropelada por um vagão de uma empresa de tabaco em Bordéus. Estava Agnés a brincar numa zona em que existia uma linha de comboios, e em que não era suposto haver o cruzamento de qualquer vagão, quando ocorreu um descarrilamento, no qual a criança foi atingida. Do acidente, Agnés foi afectada na sua integridade física, sofrendo lesões corporais graves.
Na sequência deste acontecimento, os pais da criança dirigiram-se aos tribunais de Bordéus, que, contudo, se disse incompetente por estar em causa uma empresa pública. Acrescentou o Tribunal que, mesmo que pudesse decidir, não havia lei aplicável, pois o Code de Napoleon apenas se aplicava em situações entre iguais, e a Administração não era um igual.
Seguidamente, o Mére du Corege toma decisão idêntica, e será apenas o Tribunal seguinte, em 1872, a resolver este litígio. Na sua pronúncia, refere não haver lei aplicável, sendo por isso necessário criar um ramo de direito novo e autónomo para proteger a Administração. Esta será a primeira vez que um tribunal vai reconhecer a necessidade de autonomia científica do direito administrativo, que é, contudo, afirmada para negar uma indemnização a uma criança de 5 anos. Este é um trauma que, como veremos, ainda hoje marca a história da responsabilidade civil administrativa.

Em Portugal, até à Reforma do Contencioso, discutia-se qual o tribunal competente em matéria de responsabilidade civil quando esta envolvesse a Administração.
Distinguia-se, nomeadamente, consoante estivesse em causa um acto de gestão pública, onde era aplicável o direito público, e situações de gestão privada, a que seriam aplicáveis normas do direito civil, onde seriam competentes os tribunais civis.
Esta esquizofrenia era ainda mais grave devido à falta de critérios para se dizer que determinados actos eram de poder, enquanto outros não eram. Perante este problema, a doutrina e jurisprudência tentavam procurar critérios práticos para proceder às distinções.  Exemplificando, num acidente de viação em que um carro de um Ministro atropela uma criança na Avenida da Liberdade, entendia a jurisprudência que, para saber se o acto era administrativo ou não, era necessário determinar se aquele acto era de gestão pública ou privada. Entendia-se que, se o Ministro estivesse presente no carro, o acto seria público. Por outro lado, se não estivesse, seria privado.
Ora, sucede que a questão de responsabilidade civil que se levanta é exactamente a mesma, quer o Ministro esteja presente no carro, quer não, e por isso a distinção não faz qualquer sentido sentido. Aliás, para além de ser ilógica, gera uma esquizofrenia indesejável.

Tendo esse fenómeno em mente, o legislador quis pôr termo a esta confusão legislativa, o que deu origem à Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas de Direito Público (Lei n.º67/2007, de 31 de Dezembro), na qual se determina que, independentemente de existir uma dualidade em termos legislativos, a dualidade jurisdicional termina.

A mesma intenção encontra-se expressa na formulação do art.4º do Estatuto, designadamente das al. g), h) e i), que estabeleceu um sistema que se pretendia unificado e de maior amplitude.
Desde logo, alarga-se a responsabilidade civil extracontratual ao domínio da função administrativa, política e jurisdicional. Foi então introduzido um alargamento que vai além daquele que é o universo da jurisdição, uma vez quea função política e jurisdicional não são realidades do domínio do direito Administrativo. No entanto, e no entendimento do Prof. Rui Medeiros, tal unificação justifica-se pois, apesar de não estarmos perante a mesma função, estamos sempre perante uma responsabilidade pública que, segundo esta perspectiva, deveria conduzir a uma unidade, não só jurisprudencial, como também legislativa.
Mas o legislador não se fica por aqui, tendo procurado alargar o regime da responsabilidade civil, não apenas aos órgãos administrativos propriamente ditos, mas incluindo tudo o que esteja relacionado com relações inter e intra orgânicas.
Por último, este art.4º, ainda numa lógica de alargamento, acrescenta que este regime público da responsabilidade civil pública se aplica não apenas no quadro de relações entre um particular e órgãos administrativos, mas pode ter lugar no âmbito da actuação de sujeitos privados, que actuam no quadro do exercício da função administrativa.

Não obstante esta ampla perspectiva adoptada pelo legislador, continuam a existir algumas suas formulações que geram algumas dúvidas. Tomando um exemplo, uma das questões é a de saber se a referida aplicabilidade do regime aos sujeitos privados resulta imediatamente desta norma, regime processual, ou se está dependente de norma posterior.
Ou seja, o principal problema é o de, não obstante a intenção do legislador de pôr termo às esquizofrenias, a fórmula por ele utilizada não foi suficientemente feliz, fazendo surgir diversas questões relativamente à interpretação das suas normas. Ora, o legislador quis que não houvesse dúvidas que todas as relações que têm a ver com o exercício da função Administrativa caíssem no contencioso Administrativo, daí que, na melhor das suas intenções, utilizou a expressão “quando haja lugar”. Acontece que os Tribunais vieram interpretar o uso dessa expressar no sentido de que tal só aconteceria quando fosse determinada a existência de uma responsabilidade pública.
Também a realidade de situações de conculpabilidade introduziu uma brecha no sistema que levou a que, em caso de dúvida, o juiz remetesse os casos para os tribunais judiciais. Nesta nossa história, se repetíssemos a situação de Agnés Blanco já depois da Reforma, ainda encontraríamos este primeiro problema da dúvida quanto ao tribunal competente, se houvesse uma dessas situações de conculpabilidade ou culpa exclusiva da vítima.
O resultado da tentativa de unificação diminuiu os casos em que tal se verificava, mas não os eliminou de forma total, e a dúvida continuava a colocar-se.

Tudo visto, parece contudo que não há razão para que a dúvida subsista. Desde logo, como já foi referido, estamos em todo o caso a referir-nos a uma mesma relação, uma mesma realidade jurídica. Se, continuando com o exemplo dado no início desta dissertação, há um automóvel da Administração Pública que atropela um particular, é indiferente saber como se distribui a culpa. Tanto existe a relação jurídica administrativa numa situação ou na outra, e por isso não faz sentido estar a qualificar a situação de forma diferente.
Mas mais, é de considerar que a questão da determinação da competência do tribunal não pode depender da solução a dar ao caso. A questão de saber qual é a jurisdição competente é uma questão prévia, é um pressuposto processual. Não faz por isso sentido condicionar a resolução de uma questão que corresponde ao pressuposto processual ao resultado final do litígio.
Se isto não bastasse, havia a considerar aquela que foi a intenção do legislador de pôr termo à esquizofrenia e regular, em termos unitários, o universo da competência da responsabilidade civil pública. Esta orientação jurisprudencial é ilógica, irracional, e contraria aquilo que é a realidade portuguesa.
Melhor solução seria a de interpretar de forma correctiva aquilo que o legislador disse, uma vez que aplicabilidade dos princípios permite a construção unitária do regime da responsabilidade civil pública.
Todavia, é de notar um possível problema deste regime unitário. É que, em abstracto, a ideia de unificação da responsabilidade civil por actos da função administrativa, política e jurisdicional, faz com que o juiz administrativo tenha de pensar duas vezes antes de condenar a Administração ao pagamento de uma indemnização, uma vez que está também preocupado com as consequências dos seus actos. Dizia já o Prof. Marcelo Caetano que quando o juiz condena a Administração ao pagamento de uma indemnização, condena-se a si mesmo.

Olhando de um modo geral para o regime hoje assente, certo é que, além da dualidade esquizofrénica que ainda se mantinha, ainda que mais acumulada do que anteriormente, continua a haver a dualidade quanto ao direito aplicável.
Concluímos então por constatar que esta realidade esquizofrénica continua mesmo após a aprovação da lei substantiva, e que Agnés Blancó é ainda um fantasma do presente.

Inês Metello - 140111090


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