sábado, 13 de dezembro de 2014

Enquadramento constitucional da responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função legislativa


Já em momento anterior ao da sua regulação na nova lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, era reconhecida na ordem jurídico-constitucional portuguesa, à face do disposto no artigo 22º da CRP, a existência do instituto da responsabilidade do Estado por danos ilicitamente causados no exercício da função legislativa.

Por estritas razões de economia de exposição, permitimo-nos, a este propósito, remeter para a conseguida síntese de Rui Medeiros sobre o tema, cujo conteúdo se passa a enunciar.

Aparentemente, dir-se-á que as diversas opiniões que têm sido manifestadas nos anos mais recentes [sobre a matéria da responsabilidade do Estado pelo exercício da função legislativa] são muito diversas, impedindo por isso que, mesmo em pontos essenciais, se possa falar numa communis opinio. Todavia, e em rigor, não é isso o que se passa. Com efeito, não obstante as dificuldades interpretativas que o art. 22º [da CRP] suscita e as controvérsias doutrinais que em torno dele têm surgido, existe actualmente um consenso muito alargado – que não é sinonimo de unanimidade – sobre as questões fundamentais em que se joga o tudo ou nada de uma acção de indemnização proposta, mesmo na ausência de lei concretizadora do art. 22º, contra o Estado por acções ou omissões ilícitas do Legislador. Isto é bem visível na resposta substancialmente comum que a doutrina largamente dominante dá a três aspectos centrais da teoria da responsabilidade por facto ilícito do Legislador.

1º) O art. 22º estabelece um princípio geral de responsabilidade por facto das leis.

2º) Não obstante ser controverso se este preceito vale apenas para a responsabilidade por factos ilícitos ou, pelo contrário, abrange também a reparação pelo sacrifício ou pelo risco, cabe claramente no âmbito do art. 22º a responsabilidade por ilícito legislativo. “Convém referir antes de mais que são já em número significativo os autores que sustentam que o art. 22º da Constituição está justamente pensado para a responsabilidade por factos ilícitos, cobrindo assim também os danos causados pelo ilícito legislativo.

“Todavia, mesmo os autores que recusam uma leitura mais restritiva do art. 22º da Constituição não hesitam em vislumbrar nesse preceito constitucional o fundamento para uma responsabilidade civil do Estado pelo exercício ilícito da função legislativa. “Convém referir antes de mais que são já em número significativo os autores que sustentam que o art. 22º da Constituição está justamente pensado para a responsabilidade por factos ilícitos, cobrindo assim também os danos causados pelo ilícito legislativo.

3º) Em face da omissão do Legislador, que tarda em concretizar a referida disposição constitucional, o art. 22º pode ser directamente invocado”, pelo que, “actualmente, a esmagadora maioria da doutrina […] não hesita em reconhecer que este preceito constitucional pode já hoje, mesmo na ausência de lei, ser aplicado directamente pelos tribunais numa acção de responsabilidade”.

Como, entretanto, também refere o mesmo autor, este entendimento – adoptado pela doutrina largamente maioritária – obteve inequívoco acolhimento na jurisprudência. E por isso reconhecia o autor que o art. 22º da CRP era uma norma directamente aplicável mesmo na falta de lei concretizadora, cabendo aos juízes e aos tribunais criar a norma de decisão respectiva.

Cumpre ter, pois, presente que, já antes da entrada em vigor da nova lei agora adoptada, já era entendimento generalizado, tanto na doutrina, como na jurisprudência portuguesas, que do artigo 22º da CRP decorria o fundamento directo da responsabilidade do Estado pelo facto das leis, competindo, por isso, aos juízes, na falta de lei concretizadora, proceder à densificação dos correspondentes pressupostos, a partir do referido artigo 22º e/ou dos princípios gerais da responsabilidade civil.

A responsabilidade do legislador não constitui, portanto, uma excentricidade que o legislador português, com a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, se tenha lembrado de inventar. Pelo contrário, do que se tratou foi de procurar preencher, em matéria tão sensível e delicada, o vazio normativo dentro do qual os tribunais se vinham movendo com grande liberdade, densificando os pressupostos de que, de harmonia com o que tem defendido a maioritária doutrina portuguesa, deve depender a responsabilidade do Estado pelo facto das leis.

Foi o que a nova lei portuguesa da responsabilidade do Estado procurou fazer, dedicando ao tema da responsabilidade emergente do exercício da função legislativa o artigo 15º do novo regime, que, sobre a matéria, estabelece o seguinte:

1 — O Estado e as regiões autónomas são civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos por actos que, no exercício da função político -legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado.
2 — A decisão do tribunal que se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma jurídica ou sobre a sua desconformidade com convenção internacional, para efeitos do número anterior, equivale, para os devidos efeitos legais, a decisão de recusa de aplicação ou a decisão de aplicação de norma cuja inconstitucionalidade, ilegalidade ou desconformidade com convenção internacional haja sido suscitada durante o processo, consoante o caso.
3 — O Estado e as regiões autónomas são também civilmente responsáveis pelos danos anormais que, para os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, resultem da omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais.
4 — A existência e a extensão da responsabilidade prevista nos números anteriores são determinadas atendendo às circunstâncias concretas de cada caso e, designadamente, ao grau de clareza e precisão da norma violada, ao tipo de inconstitucionalidade e ao facto de terem sido adoptadas ou omitidas diligências susceptíveis de evitar a situação de ilicitude.
5 — A constituição em responsabilidade fundada na omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais depende da prévia verificação de inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional.
6 — Quando os lesados forem em tal número que, por razões de interesse público de excepcional relevo, se justifique a limitação do âmbito da obrigação de indemnizar, esta pode ser fixada equitativamente em montante inferior ao que corresponderia à reparação integral dos danos causados.

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  •  in A responsabilidade do legislador no âmbito da nova lei portuguesa da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por Mário Aroso de Almeida, encontro anual CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA (2009).

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