domingo, 14 de dezembro de 2014

A Reforma da Impugnação

- Considerações sobre as características da Acção Administrativa Especial de Impugnação de Actos Administrativos, antes e após 2004 –

Regressamos ao estudo da acção especial de impugnação de actos administrativos, desta feita versando sobre as principais alterações sobre aquele que era o seu entendimento antes, e depois, da Reforma de 2004 do Contencioso Administrativo.

Do ponto de vista clássico, estaria em causa, neste meio processual, apreciar a validade de um acto administrativo. É, aliás, o que corresponde às concepções acto-cêntricas.
Especificando, na visão de Otto Mayer, para quem tanto a Administração como a Justiça representavam funções executivas, o acto administrativo é o que define, obrigatoriamente, o direito do súbdito no caso concreto. Se a Administração definia o direito aplicável, então podia também impô-lo coativamente sobre um particular.
Também o Prof. Marcello Caetano, a partir dos anos 40 e 50 o séc. XX, vem construir uma noção de acto administrativo enquanto acto definitivo e executório. Deste modo, adopta uma noção ampla de acto administrativo, na sua versão mais perfeita e processual. No quadro desta realidade, é contudo de referir que a impugnabilidade não era apenas característica do acto em processo, mas antes uma sua característica substantiva.
Da ideia de definitividade e executoriedade decorria uma tripla definitividade, uma vez que só seria possível impugnar um acto quando esse (1) tivesse definitividade material – quando definisse os direitos dos particulares –, (2) definitividade horizontal – tinha de se tratar do último acto do procedimento – e (3) definitividade vertical – fosse proveniente de um superior hierárquico.

É de notar que o conceito de acto administrativo enquanto acto definitivo e executório apenas desapareceu da ordem jurídica portuguesa, do ponto de vista legislativo, com a Reforma de 2004. Hoje, o acto administrativo não é mais a farda única do Direito Administrativo, que se vê agora num modelo de pronto-a-vestir.
Aliás, querendo exemplificar, do ponto de vista da executoriedade, e tomando em consideração que, hoje, a maioria dos actos são favoráveis aos particulares, não há mais razão para os actos administrativos serem coativamente forçados/executados.
É também de levar em atenção o facto de, hoje, a Administração ter um papel mais activo em termos de regulação. As entidades reguladoras exercem uma função administrativ,a exercendo regras para o exercício de uma actividade, e intervindo no âmbito de uma Administração. Com isto vem a questão da multiplicidade de efeitos do acto. É que, nos dias de hoje, os actos administrativos têm uma multiplicidade de sujeitos e efeitos, inclusivamente em relação a terceiros, que agora devem deixar de ser considerados como tal, passando a ser (também) tratados como sujeitos.
Claro está que continuam a existir actos típicos de polícia e actos prestadores, mas todos eles com eficácia multilateral. Quer isto dizer que estas realidades coexistem e dão origem a uma outra realidade que tem uma dimensão que deve ser entendida nos termos e tempos hodiernos.
Todas as referidas transformações contribuíram para a necessidade de reforma do Contencioso Administrativo português, ao estabelecer uma lógica diferenciada na impugnação do acto. Com a Reforma de 2004, houve, pode considerar-se, uma caducidade das normas existentes, uma vez que o que sucedeu foi o estabelecimento de um novo regime, que veremos de seguida.

Desde logo, quanto à questão da definitividade material, encontramos agora a norma do art. 53º que a vem desvalorizar. O que era a eficácia prática da definitividade material era dizer que o acto produzido não tinha sido tempestivamente impugnado, logo, tal não poderia ser feito mais tarde. Agora, a ideia de definitividade material é posta em causa, pois o particular só não pode impugnar se os actos forem exactamente iguais. Se, contudo, houver alguma alteração, então já pode ser impugnado.
Posto de outra forma, as regras constantes no art. 53º vêm limitar as hipóteses de não impugnação decorrentes do facto de ter havido um acto anterior, mas estabelece que o que releva é a lesão e não a definição do direito.

Olhando para outro aspecto, em particular para o actual art. 51º, vemos que a regra já nada tem que ver com executoriedade. A norma do referido artigo apresenta dois critérios distintos. Nomeadamente, refere actos com eficácia externa e actos susceptíveis de lesar direitos. O primeiro consistirá num acto que produz efeitos, ou seja, é a mera produção de efeitos. No segundo caso, o critério é o da lesão. Muito embora o critério pareça ser o da lesão de direitos, não podemos esquecer que, no caso da acção pública ou popular, já não estará em causa nenhum direito lesado, mas antes uma ilegalidade que deve ser afastada da ordem pública.
Da perspectiva do legislador, a impugnabilidade tem uma lógica processual. Quer isto dizer que o relevante não será as características do acto, mas antes o facto de este se encontrar numa situação que produz, ou pode produzir, efeitos lesivos na esfera dos particulares.
Assim, e com o intuito de afastar a ideia da definitividade horizontal, o legislador determina agora que são impugnáveis os actos, ainda que inseridos no procedimento administrativo. Quer isto dizer que o acto, desde que apresente eficácia externa, pode ser impugnado a qualquer momento, não estando apenas o último acto sujeito a impugnação. Deste modo, o particular pode escolher o momento em que quer atacar a actuação da Administração, escolhendo ora o primeiro acto, ora o último, ora outro no intervalo dos dois (art.51º, n.ºs 1 e 3).

Por último, em relação ao acto definitivo em termos verticais, hoje, se olharmos para as regras do art. 53º e seguintes, em nenhuma delas se faz qualquer referência ao facto de o acto ser necessariamente praticado pelo órgão de topo, isto é, pelo órgão superior da hierarquia. Assim o é, pois o legislador quis afastar esse modelo piramidal e hierárquico e porque a lesão pode produzir-se perante o acto de um subalterno.
É relativamente a este ponto que se discute a questão do recurso hierárquico dito necessário. Hoje, o recurso não consta enquanto exigência ou pressuposto processual, tendo este requisito desaparecido em 1989.  Assim foi pois, em primeiro lugar, a exigência do recurso hierárquico necessário violaria o princípio do acesso à justiça. Acontece que, com a exigência de um tal recurso, estar-se-ia a condicionar o acesso à justiça pela necessidade de exercício de uma garantia administrativa.
A consequência de dizer que o recurso hierárquico é necessário, é a do particular que não tenha recorrido a tal recurso, mesmo que ainda esteja no seu prazo de três meses, ficar impedido de ir a Tribunal.
O mesmo vale quanto à limitação prática do exercício do direito. É que o direito do particular estaria a ser desproporcionalmente limitado, tando no seu conteúdo quanto no seu exercício. A desproporção que resultava dessa exigência era a da redução do período de impugnação de dois meses (prazo que então existia), para um mês, por ser esse o prazo para impugnação por recurso hierárquico. Uma redução a metade de um prazo que já é curto, vem limitar o direito em termos que parecem desproporcionais.
Através desta reforma, o recurso hierárquico necessário tornou-se desnecessário, uma vez que se apresentou enquanto uma realidade que deixou de fazer sentido.
Ainda assim, é de notar que o Código de Procedimento Administrativo continua a admitir, ainda que a título excepcional e conjugado com novas normas de processo, este recurso hierárquico. Não obstante, do ponto de vista essencial, não há razões constitucionais para que subsista o recurso hierárquico necessário. Aliás, não há razões legais nem de razoabilidade. Se assim é, não há motivo nem vantagens para manter o sistema como está.
Todavia, o legislador estabeleceu algumas regras que se mostram vantajosas para o particular que escolha utilizar este recurso, já não necessário, mas facultativo. Desde logo, exemplificando, observando os prazos de impugnação, notamos que o prazo se suspende. Quer isto dizer que se o particular impugnar graciosamente, isto é, se impugnar através de recurso hierárquico facultativo, haverá uma suspensão do prazo de impugnação, o que permite que haja algum ganho de causa em utilizar essa realidade.
Não obstante, olhando para o n.º5 do art. 59.º do CPTA, vemos que a suspensão do prazo não impede o interessado de proceder à impugnação contenciosa do acto na pendência da acção administrativa.
Podemos então concluir pelo afastamento da ideia do recurso hierárquico necessário, que, pode mesmo dizer-se, era inconstitucional, ilegal, e inútil do ponto de vista da protecção dos direitos dos particulares.

Tudo visto, hoje, perante um acto de um subalterno, o particular pode fazer uma de três coisas: (1) impugnar administrativamente, esperar a decisão e, perante um acto confirmativo, impugnar contenciosamente; (2) impugnar administrativamente e, antes de obter a resposta, impugnar contenciosamente; (3) impugnar simultaneamente, tanto administrativamente como contenciosamente.

 Parece assim que o (agora) recurso facultativo vem abrir portas às escolhas dos particulares, relativamente ao rumo que pretende dar ao seu processo. 

Inês Metello - 140111090

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