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Considerações sobre as características da Acção Administrativa Especial de Impugnação
de Actos Administrativos, antes e após 2004 –
Regressamos
ao estudo da acção especial de impugnação de actos administrativos, desta feita
versando sobre as principais alterações sobre aquele que era o seu entendimento
antes, e depois, da Reforma de 2004 do Contencioso Administrativo.
Do ponto
de vista clássico, estaria em causa, neste meio processual, apreciar a validade
de um acto administrativo. É, aliás, o que corresponde às concepções
acto-cêntricas.
Especificando,
na visão de Otto Mayer, para quem tanto a Administração como a Justiça
representavam funções executivas, o acto administrativo é o que define,
obrigatoriamente, o direito do súbdito no caso concreto. Se a Administração
definia o direito aplicável, então podia também impô-lo coativamente sobre um
particular.
Também o
Prof. Marcello Caetano, a partir dos anos 40 e 50 o séc. XX, vem construir uma
noção de acto administrativo enquanto acto definitivo e executório. Deste modo,
adopta uma noção ampla de acto administrativo, na sua versão mais perfeita e
processual. No quadro desta realidade, é contudo de referir que a
impugnabilidade não era apenas característica do acto em processo, mas antes
uma sua característica substantiva.
Da ideia
de definitividade e executoriedade decorria uma tripla definitividade, uma vez
que só seria possível impugnar um acto quando esse (1) tivesse definitividade
material – quando definisse os direitos dos particulares –, (2) definitividade
horizontal – tinha de se tratar do último acto do procedimento – e (3)
definitividade vertical – fosse proveniente de um superior hierárquico.
É de
notar que o conceito de acto administrativo enquanto acto definitivo e
executório apenas desapareceu da ordem jurídica portuguesa, do ponto de vista
legislativo, com a Reforma de 2004. Hoje, o acto administrativo não é mais a
farda única do Direito Administrativo, que se vê agora num modelo de
pronto-a-vestir.
Aliás,
querendo exemplificar, do ponto de vista da executoriedade, e tomando em
consideração que, hoje, a maioria dos actos são favoráveis aos particulares,
não há mais razão para os actos administrativos serem coativamente forçados/executados.
É também
de levar em atenção o facto de, hoje, a Administração ter um papel mais activo
em termos de regulação. As entidades reguladoras exercem uma função
administrativ,a exercendo regras para o exercício de uma actividade, e
intervindo no âmbito de uma Administração. Com isto vem a questão da
multiplicidade de efeitos do acto. É que, nos dias de hoje, os actos
administrativos têm uma multiplicidade de sujeitos e efeitos, inclusivamente em
relação a terceiros, que agora devem deixar de ser considerados como tal,
passando a ser (também) tratados como sujeitos.
Claro
está que continuam a existir actos típicos de polícia e actos prestadores, mas todos
eles com eficácia multilateral. Quer isto dizer que estas realidades coexistem
e dão origem a uma outra realidade que tem uma dimensão que deve ser entendida
nos termos e tempos hodiernos.
Todas as
referidas transformações contribuíram para a necessidade de reforma do
Contencioso Administrativo português, ao estabelecer uma lógica diferenciada na
impugnação do acto. Com a Reforma de 2004, houve, pode considerar-se, uma caducidade
das normas existentes, uma vez que o que sucedeu foi o estabelecimento de um novo
regime, que veremos de seguida.
Desde
logo, quanto à questão da definitividade material, encontramos agora a norma do
art. 53º que a vem desvalorizar. O que era a eficácia prática da definitividade
material era dizer que o acto produzido não tinha sido tempestivamente impugnado,
logo, tal não poderia ser feito mais tarde. Agora, a ideia de definitividade
material é posta em causa, pois o particular só não pode impugnar se os actos
forem exactamente iguais. Se, contudo, houver alguma alteração, então já pode
ser impugnado.
Posto de
outra forma, as regras constantes no art. 53º vêm limitar as hipóteses de não
impugnação decorrentes do facto de ter havido um acto anterior, mas estabelece
que o que releva é a lesão e não a definição do direito.
Olhando
para outro aspecto, em particular para o actual art. 51º, vemos que a regra já
nada tem que ver com executoriedade. A norma do referido artigo apresenta dois
critérios distintos. Nomeadamente, refere actos com eficácia externa e actos
susceptíveis de lesar direitos. O primeiro consistirá num acto que produz
efeitos, ou seja, é a mera produção de efeitos. No segundo caso, o critério é o
da lesão. Muito embora o critério pareça ser o da lesão de direitos, não
podemos esquecer que, no caso da acção pública ou popular, já não estará em
causa nenhum direito lesado, mas antes uma ilegalidade que deve ser afastada da
ordem pública.
Da
perspectiva do legislador, a impugnabilidade tem uma lógica processual. Quer
isto dizer que o relevante não será as características do acto, mas antes o
facto de este se encontrar numa situação que produz, ou pode produzir, efeitos
lesivos na esfera dos particulares.
Assim, e
com o intuito de afastar a ideia da definitividade horizontal, o legislador
determina agora que são impugnáveis os actos, ainda que inseridos no
procedimento administrativo. Quer isto dizer que o acto, desde que apresente
eficácia externa, pode ser impugnado a qualquer momento, não estando apenas o
último acto sujeito a impugnação. Deste modo, o particular pode escolher o
momento em que quer atacar a actuação da Administração, escolhendo ora o primeiro
acto, ora o último, ora outro no intervalo dos dois (art.51º, n.ºs 1 e 3).
Por
último, em relação ao acto definitivo em termos verticais, hoje, se olharmos
para as regras do art. 53º e seguintes, em nenhuma delas se faz qualquer
referência ao facto de o acto ser necessariamente praticado pelo órgão de topo,
isto é, pelo órgão superior da hierarquia. Assim o é, pois o legislador quis afastar
esse modelo piramidal e hierárquico e porque a lesão pode produzir-se perante o
acto de um subalterno.
É
relativamente a este ponto que se discute a questão do recurso hierárquico dito
necessário. Hoje, o recurso não consta enquanto exigência ou pressuposto
processual, tendo este requisito desaparecido em 1989. Assim foi pois, em primeiro lugar, a exigência
do recurso hierárquico necessário violaria o princípio do acesso à justiça. Acontece
que, com a exigência de um tal recurso, estar-se-ia a condicionar o acesso à
justiça pela necessidade de exercício de uma garantia administrativa.
A
consequência de dizer que o recurso hierárquico é necessário, é a do particular
que não tenha recorrido a tal recurso, mesmo que ainda esteja no seu prazo de
três meses, ficar impedido de ir a Tribunal.
O mesmo
vale quanto à limitação prática do exercício do direito. É que o direito do
particular estaria a ser desproporcionalmente limitado, tando no seu conteúdo
quanto no seu exercício. A desproporção que resultava dessa exigência era a da
redução do período de impugnação de dois meses (prazo que então existia), para
um mês, por ser esse o prazo para impugnação por recurso hierárquico. Uma
redução a metade de um prazo que já é curto, vem limitar o direito em termos
que parecem desproporcionais.
Através
desta reforma, o recurso hierárquico necessário tornou-se desnecessário, uma
vez que se apresentou enquanto uma realidade que deixou de fazer sentido.
Ainda
assim, é de notar que o Código de Procedimento Administrativo continua a
admitir, ainda que a título excepcional e conjugado com novas normas de
processo, este recurso hierárquico. Não obstante, do ponto de vista essencial,
não há razões constitucionais para que subsista o recurso hierárquico
necessário. Aliás, não há razões legais nem de razoabilidade. Se assim é, não
há motivo nem vantagens para manter o sistema como está.
Todavia,
o legislador estabeleceu algumas regras que se mostram vantajosas para o
particular que escolha utilizar este recurso, já não necessário, mas
facultativo. Desde logo, exemplificando, observando os prazos de impugnação, notamos
que o prazo se suspende. Quer isto dizer que se o particular impugnar
graciosamente, isto é, se impugnar através de recurso hierárquico facultativo, haverá
uma suspensão do prazo de impugnação, o que permite que haja algum ganho de causa
em utilizar essa realidade.
Não
obstante, olhando para o n.º5 do art. 59.º do CPTA, vemos que a suspensão do
prazo não impede o interessado de proceder à impugnação contenciosa do acto na
pendência da acção administrativa.
Podemos
então concluir pelo afastamento da ideia do recurso hierárquico necessário,
que, pode mesmo dizer-se, era inconstitucional, ilegal, e inútil do ponto de
vista da protecção dos direitos dos particulares.
Tudo
visto, hoje, perante um acto de um subalterno, o particular pode fazer uma de
três coisas: (1) impugnar administrativamente, esperar a decisão e, perante um
acto confirmativo, impugnar contenciosamente; (2) impugnar administrativamente
e, antes de obter a resposta, impugnar contenciosamente; (3) impugnar
simultaneamente, tanto administrativamente como contenciosamente.
Parece assim que o (agora) recurso facultativo
vem abrir portas às escolhas dos particulares, relativamente ao rumo que pretende
dar ao seu processo.
Inês Metello - 140111090
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