quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O bom, o mau e o vilão do Contencioso Cautelar

O que se quer com uma providência cautelar é que o tribunal venha regular a situação de facto entre as partes, com o fim de acautelar o efeito da decisão que venha a ser proferida na acção propriamente dita. Visa-se, no fundo, garantir que a decisão que é proferida numa acção tenha eficácia prática e não se inutilize. Por isso muitas vezes se diz que as providências cautelares são a garantia da garantia.

O actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (adiante CPTA) consagra uma revolução em relação àquilo que era tradicional no Direito português. Havia antes uma suspensão de eficácia regulada em termos restritivos e que raramente era concedida pelo juiz. Pode-se dizer, em rigor, que antes da reforma de 2004 praticamente não havia tutela cautelar no Direito português. Esta era uma preocupação europeia.
Há agora uma preocupação em consagrar uma tutela cautelar adequada aos litígios do Contencioso Administrativo.
Quanto aos meios de tutela e ao âmbito de aplicação destes meios o legislador estabelece o regime adequado. Quanto à tramitação e às regras adoptadas em termos do processo propriamente dito, o legislador criou algumas situações que são absurdas do ponto de vista da tutela cautelar. As regras da tramitação geram problemas por um lado de inconstitucionalidade porque se põe em causa o direito de acesso à justiça, por outro lado de ilegalidade por violação de normas europeias.

Havia uma crítica da doutrina quanto à insuficiência do mecanismo tipificado de protecção cautelar e havia uma tentativa de alargar esses casos tipificados através do recurso ao Código de Processo Civil. No quadro dessa discussão havia posições doutrinárias muito marcadas que vão conseguir alguma abertura por parte do juiz cautelar. É o caso da professora Maria da Glória Garcia e do professor Vieira de Andrade, por exemplo. Em matéria de ambiente o professor Freitas do Amaral e o professor Vasco Pereira da Silva entendiam que o mecanismo para intimação de um comportamento em sede ambiental podia ser integrado nos embargos de obra nova do Código de Processo Civil.
Apesar destas posições da doutrina, o professor Vasco Pereira da Silva costumava dizer que era mais fácil encontrar um tigre na serra da Malcata do que uma sentença num Tribunal Administrativo que tivesse suspendido a execução de um acto administrativo. E esta é, de facto, uma metáfora bastante ilustrativa da insuficiência da tutela cautelar no Contencioso Administrativo português.

O legislador de 2004 quis alterar radicalmente o sistema das providências cautelares no Contencioso Administrativo, tendo para tal em atenção a discussão que tinha havido anteriormente na doutrina, decidiu estabelecer como providências cautelares os casos que a doutrina tinha anteriormente identificado.

As providências cautelares já não são tipificadas. O artigo 112º/1 CPTA veio introduzir um princípio de cláusula aberta em matéria de providências cautelares. Deste modo, qualquer medida que seja necessária e adequada para garantir o efeito útil de uma sentença dos tribunais passa a poder ser solicitada no quadro do Contencioso Administrativo.
O legislador não ficou por aqui e, não ignorando a anterior discussão, resolveu especificar a título exemplificativo algumas providências cautelares. A abrir o art. 112º/2 CPTA o legislador diz, remetendo para o Processo Civil, que todas as providências especificadas no Código de Processo Civil são aplicáveis no Contencioso Administrativo como providências não especificadas. Este é um segundo alargamento, para além do alargamento da cláusula geral.
Depois identifica-se uma série de casos que tinham justificado a intervenção da doutrina reclamando o alargamento das situações que estavam dentro da matéria das providências cautelares (casos que, sublinho, não são taxativos).

O professor Freitas do Amaral, num artigo publicado, depois de elogiar as várias opções do legislador na Reforma de 2004 nesta matéria, vem criticar a última hipótese de especificação de providência cautelar, vertida pelo legislador na alínea f) do nº 2 do art. 112º CPTA. Permite-se ao particular, por via desta alínea, que use a tutela cautelar com alguma dimensão antecipatória porque estamos perante situações em que não tem que haver uma violação efectiva e consumada. É uma realidade que permite uma reacção não apenas contra uma lesão mas que tem uma dimensão antecipatória. É nestes termos que Freitas do Amaral coloca as suas críticas. Isto significa atribuir ao Contencioso um papel activo que poderia pôr em causa a actuação do tribunal enquanto realidade executiva.

Ora, no entendimento do professor Vasco Pereira da Silva há algum exagero nesta posição desde logo porque o professor Freitas do Amaral atribui uma amplitude a esta norma jurídica que ela efectivamente não tem. Se repararmos, a possibilidade antecipatória só existe quando haja um “fundado receio”. Não basta, assim, qualquer receio de que venha a acontecer uma lesão. Há um conjunto de situações que cabem nesta previsão legal e são adequadas no quadro desta dimensão antecipatória. Pensemos, por exemplo, nos planos de urbanização que estabelecem regras cuja aplicabilidade está dependente de um acto administrativo. O particular neste caso tem um fundado receio que aquilo que se diz no plano de urbanização venha aplicar-se ao seu caso. Faz sentido que o particular utilize uma providência cautelar de modo a não por em causa a satisfação do efeito útil da sentença que ele possa vir a obter. O professor Vasco Pereira da Silva diria que o professor Freitas do Amaral exagerou um pouco nas críticas. O que está aqui em causa nem corresponde a uma subversão da tutela cautelar nem de alguma maneira põe em causa os poderes do juiz. O nosso Contencioso já cumpre quer as exigências constitucionais quer as exigências europeias e aqui o legislador realizou um bom trabalho.

Há uma cláusula nos arts. 120º e 121º do CPTA que é, se interpretada à letra, excessivamente detalhada. O legislador previu hipóteses que diz serem praticamente automáticas. Se lermos com atenção o que o legislador quis consagrar é o que o Código de Processo Civil também consagra que é a ideia da necessidade de haver um fummus bonis iuris, isto é, a aparência de bom direito. Para além disto o legislador estabelece a regra da proporcionalidade. O juiz vai comparar as pretensões das partes e decidir em termos proporcionais aos interesses em causa. Acresce ainda que tem de haver da parte de quem é presente ao pedido a alegação de um prejuízo irreparável ou de difícil reparação. O art. 120º CPTA podia ser melhor substituído por um conjunto de regras mais simples e concisas onde se enunciassem estas três realidades de forma clara, mas na verdade são estas realidades já consagradas no âmbito do Processo Civil que estão aqui em causa.
Isto dito, e estamos perante a parte boa de regulação, vamos às questões de tramitação e vamos analisar um aspecto que para o professor Vasco Pereira da Silva é muito criticável.
Os arts. 126º e ss. do CPTA têm um conjunto de regras que têm a ver com a tramitação da providência pensada sobretudo para a suspensão de eficácia. É preciso recuar à discussão antes da reforma e depois da reforma. Na perspectivado professor Vasco Pereira da Silva, a melhor forma de resolver esse problema era adoptar um sistema similiar ao alemão.

No sistema alemão, se o particular apresenta um pedido isso tem um efeito automático no sentido de suspensão do que está em causa. O sistema funciona no sentido de que é automática essa suspensão a menos que o Tribunal confira à Administração a faculdade de decidir executar na mesma. Este sistema na perspectiva do professor Vasco Pereira da Silva era muito mais eficaz e permitia alterar o modo como estava a funcionar a justiça administrativa. O legislador criou uma solução que supostamente está a meia tinta e criou um disparate total. Em primeiro lugar parece ter consagrado a suspensão automática do direito alemão.  O particular pede a suspensão de eficácia, as obras param durante 15 dias, mas na prática a execução continua sempre. Em rigor não há suspensão automática, portanto o regime é absurdo. O legislador controla a fundamentação e não a realidade material. Tudo isto é um disparate.
Isto ainda são claramente resquícios da infância difícil do Contencioso Administrativo, porque se dizia que a Administração Pública gozava do privilégio da execução, tinha poderes executórios. Esses resquícios do passado não fazem qualquer sentido nos dias de hoje.

Os juízes do Sumpremo Tribunal Administrativo têm dito que o que está no art. 128º CPTA é um pré-processo cautelar. Os processos podem demorar 1 ou 2 anos, e durante esse tempo há um pré-processo onde é a Administração Pública que decide se executa ou não. Ora, não faz sentido que em relação a providências cautelares haja um pré-processo. Há uma realidade pré-processual que não faz sentido e subverte a lógica da tutela cautelar.
No âmbito da reforma da reforma estabelece-se uma limitação ao poder da Administração Pública, embora o problema não fique definitiva e adequadamente resolvido.

Na perspectiva do professor Vasco Pereira da Silva era preferível um sistema que invertesse a regra e previsse em primeiro lugar a suspensão, e depois estabelecesse um prazo (que na Alemanha são 15 dias) para que o Tribunal decidisse.

Temos, assim, um Contencioso Cautelar que, por um lado é aberto e estabelece critérios razoáveis (o bom), mas por outro lado temos aquela realidade de subversão da lógica do Contencioso Cautelar que não faz sentido no quadro actual da nossa ordem jurídica (o mau), e a agravar temos a interpretação do Supremo Tribunal do artigo 128º CPTA, que não se compreende (o vilão).

Rita Pereira de Abreu
140111082


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