A
história trágica e traumática de Agnes Blanco, se bem nos recordamos, teve
precisamente a ver precisamente com uma questão de responsabilidade civil. De
facto, nada mais trágico que a negação da devida indemnização aos pais de uma
criança atropelada por um vagão para justificar a autonomia conceptual do
Direito Administrativo.
Esta
é uma situação emblemática, que corresponde, efectivamente, a uma lógica do
passado, mas a verdade é que esta dualidade que marca este caso prolonga-se
quase até aos nossos dias. Havia uma lógica esquizofrénica naquilo que era a
responsabilidade administrativa. Esta esquizofrenia era ainda mais grave porque
não havia critérios para distinguir o que fossem actos de poder ou não.
Sobretudo se não estivéssemos perante actos jurídicos. A doutrina e a jurisprudência
procuravam critérios práticos no âmbito de uma distinção que era ela própria
ilógica.
Pensemos
num episódio banal: um carro ao serviço de um Ministro que atropela uma
criança. Naturalmente que este atropelamento gera problemas de responsabilidade
civil idênticos quer o Ministro circule dentro do carro quer não. Este critério
da gestão pública e privada, a que se recorria, não fazia qualquer sentido.
O legislador em 2002/2004 quis por termo a
esta esquizofrenia e resolver a questão pelo menos do ponto de vista
jurisdicional. As regras processuais novas introduziram a unificação do Contencioso.
No fundo, o legislador queria esclarecer de vez este problema acabando com a
dualidade de jurisdições. Queria que passasse a ser claro que independentemente
da qualificação como gestão pública ou privada, a dualidade jurisdicional iria
acabar. Esta foi a intenção do legislador que se exprime pela redacção que se
dá ao art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (adiante
ETAF), o que se traduz numa intenção de acabar com a esquizofrenia do passado.
Mas
o legislador não se ficou por aqui. O legislador, em primeiro lugar, alargava a
Responsabilidade Civil Extraobrigacional não apenas à função administrativa mas
também à função política e jurisdicional. Introduziu um alargamento que vai
inclusivamente para além daquilo que é o universo da jurisdição administrativa.
Estamos perante uma responsabilidade pública que deveria conduzir a uma unidade
não só jurisprudencial como também legislativa. A primeira opção do legislador
vai nesse sentido. O que, de acordo com o professor Vasco Pereira da Silva é um
sentido discutível mas que se pode compreender.
O
legislador procura alargar o regime da responsabilidade civil não apenas aos
órgãos administrativos propriamente ditos, mas incluir no seio do Contencioso
Administrativo tudo aquilo que tem a ver com a actividade dos titulares de
órgãos públicos. É a lógica de um contencioso de regresso, em que no quadro da
Responsabilidade Civil a entidade Administrativa responde com o seu património
pelo pagamento da indemnização, o que não significa que depois a Administração Pública
não possa ter direito de regresso em relação ao particular doloso que criou a
situação.
Por
último, o art. 4º do ETAF, na lógica de alargamento, vem dizer que este regime
se aplica não apenas no quadro de relações entre um particular e órgãos
administrativos, mas pode ter lugar também no âmbito da relação de sujeitos
privados que actuam no exercício da função administrativa. O legislador, adoptando
agora esta perspectiva ampla, deixou formulações que que continuam a gerar algumas
dúvidas.
Uma
das questões que ainda hoje persiste é a de saber se a aplicabilidade aos
sujeitos privados destas regras resulta imediatamente desta norma ou se resulta
de norma posterior. O professor Vieira de Andrade entende que é preciso haver
lei especial. Mas o problema principal é que apesar desta intenção do
legislador de por termo a estas esquizofrenias, a fórmula utilizada não foi
suficientemente feliz para resolver todos os problemas e logo após começaram a
surgir outros problemas decorrentes da interpretação da norma. O legislador
pretendeu que não houvesse dúvidas de que todas as relações que têm a ver com o
exercício da função administrativa caíssem no âmbito do Contencioso Administrativo.
Mas por usar uma expressão pouco rigorosa, logo depois da entrada em vigor
destas normas surgiu um problema que repetia os dados da história de Agnes
Blanco porque os tribunais interpretaram esta expressão “quando haja lugar” no
sentido de dizer que isto só acontecia quando fosse determinada a existência de
uma responsabilidade pública. Já não haveria lugar a Responsabilidade Civil
Extraobrigacional e deixaria de ser competente o tribunal administrativo.
O
que a jurisprudência vem dizer (na perspectiva do professor Vasco Pereira da
Silva mal) é que no caso de conculpabilidade em vez de estarmos perante um
pedido de uma Administração Pública dirigido contra um particular pode haver o
chamado pedido reconvencional. Esta realidade introduziu logo uma brecha no
sistema. Porque nestes casos o juiz mandava o processo imediatamente para o
Tribunal comum e enquanto o processo ía e vinha era menos um processo para
somar a todos os outros que tinha para resolver. Esta realidade é muito
frequente. Sempre que há uma dúvida acerca da jurisdição competente o que é
normal acontecer é que os juízes se declaram incompetentes. Os casos de
conflito positivo são casos de muita importância, mas que raramente acontecem
na vida comum. Os conflitos de jurisdição são em regra conflitos negativos de
jurisdição. O que acontece entre um juiz do tribunal judicial e um juiz
administrativo é algo relativamente comum. Há aqui uma dúvida desde logo do
tribunal competente, sendo certo que para além desta dualidade esquizofrénica
continuava a haver a dualidade esquizofrénica quanto ao direito aplicável porque
o diploma relativo à Responsabilidade Civil tinha ficado pelo caminho.
Apesar
das boas intenções o resultado desta tentativa de unificação diminuiu o número
de casos em que se verificava essa esquizofrenia mas não os eliminou e a dúvida
continuava a colocar-se. Estamos a falar da mesma realidade jurídica, do ponto
de vista jurídico se há um automóvel da Administração Pública que atropela o
particular é em termos materiais como é que se distribui a culpa porque a
questão é a mesma.
No
quadro de repartição de matérias aquilo que está em causa é saber se está ou
não em jogo uma relação jurídica administrativa e fiscal. Não faz sentido estar
a qualificar a situação de forma diferente. A questão da determinação da
competência do tribunal não pode depender da solução a dar ao caso. Saber se a
responsabilidade é do particular é uma questão de resultado da sentença. Não
faz sentido condicionar a resolução de uma questão que corresponde a um
pressuposto processual ao resultado do litígio. Para além disto também haveria
a considerar a intenção do legislador de pôr termo àquela esquizofrenia e
regular em termos unitários o universo da competência da Responsabilidade Civil
Pública. Isto contraria o critério constitucional da relação jurídica
administrativa e contraria a lógica da situação jurídica, idêntica
independentemente da questão de qualificação. Significa responder a esta
questão em função do resultado da sentença o que não faz sentido.
Não
obstante a intenção do legislador de 2002/2004 de unificar o regime jurídico,
desde logo o regime processual e a ideia de unificar também a realidade
legislativa fez com que a historinha de Agnes Blanco se continuasse a repetir
no quadro da realidade portuguesa por haver uma situação em que se colocava a
dúvida quanto ao tribunal competente e a dúvida quanto ao direito aplicável. O
que é curioso é que esta questão, que foi minorada no quadro da reforma não foi
ainda resolvida, mas mais curioso ainda é que estes traumas vão continuar
depois da aprovação da lei substantiva em 2008, com o Regime da
Responsabilidade Civil Pública. O que se esperava nessa altura era que o
legislador pusesse termo a esta dualidade esquizofrénica e unificasse o regime
processual e as regras jurídicas aplicáveis àquele caso. Em função do que a
doutrina administrativa tinha escrito no período anterior à reforma, essa era a
grande questão que o legislador não podia deixar de resolver.
O
legislador veio dizer que o Regime Público da Responsabilidade Civil se
aplicava, desde logo, às situações em que estivesse em causa o exercício de
prerrogativas de poder público. Este critério é inadequado a um regime de
Estado de Direito. Mas o legislador vem ainda dizer que cabem no universo da
Responsabilidade Civil Pública as relações reguladas por normas de direito
Administrativo. Esta era a ideia que na prática já estava por trás da
formulação de Marcelo Caetano de distinção entre gestão pública e gestão
privada. O legislador criou aqui um equívoco que permite uma interpretação
correctiva no sentido de adoptar a boa solução. Na medida em que o legislador
fala em normas e princípios de Direito Administrativo, esta abertura aos
princípios permite a unificação de todas as relações jurídicas administrativas
independentemente da forma de actuação. Isto permite unificar neste regime
jurídico também a actuação técnica e a actuação dita de gestão privada e
estabelecer um regime jurídico uniforme para toda a Responsabilidade Civil. Mas
o legislador não foi claro. Se virmos o manual do Dr. André Salgado Matos e do
professor Marcelo Rebelo de Sousa, percebemos que estes entendem que o
legislador deveria ter unificado o regime, mas como parece que não o fez
mantém-se a dualidade esquizofrénica em matéria de responsabilidade civil.
O
legislador devia ter sido mais claro. Esse era o aspecto que o legislador não
podia ter deixado de resolver porque esse era o aspecto que tinha sido mais
discutido. Isto significa que a historinha de Agnes Blanco não é só uma
história de horrorizar, mas é também algo presente. O que sucedeu em 1873 pode
continuar a suceder em Portugal em 2014. E isto em primeiro lugar porque se se
tratar de uma das questões de conculpabilidade pode haver dúvidas quanto ao
tribunal competente, mas para além disso ainda se pode considerar que a questão
da dualidade legislativa não foi integralmente resolvida. Ainda é possível
introduzir um outro factor indesejável do ponto de vista do Contencioso
Administrativo. Em abstracto a ideia da unificação da responsabilidade civil
pode ser uma boa ideia. Em abstracto não é uma realidade criticável. Mas pode
dar origem a um outro fenómeno que, esse sim, é lamentável. A partir do momento
em que se julga a responsabilidade do julgador, o juiz administrativo terá de
pensar duas vezes antes de condenar a Administração Pública ao pagamento de uma
indemnização. Sendo aparentemente uma ideia que poderia ter vantagens na
prática acabou por conduzir a que ninguém mais se preocupasse com a questão da
responsabilidade por acto da função administrativa. Por outro lado a ideia de
que o juiz poderia encontrar aqui um bode espiatório para não condenar a Administração
Pública. Isto introduz um dado prático que faz com que no Contencioso Administrativo
seja mais difícil condenar a Administração Pública do que no contencioso dos
tribunais judiciais. De alguma maneira há aqui todo um condicionamento da
actuação do juiz que reconduz a esta realidade. Até porque a lógica do
professor Marcelo
Há
que esperar que, por um lado, os tribunais não adoptem essa lógica esquizofrénica;
por outro lado que o legislador encontre os critérios unitários no âmbito da
responsabilidade pública.
Rita Pereira de Abreu
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