- Considerações acerca do
regime jurídico da acção popular -
Olhando numa perspectiva histórica, a acção
popular é um instituto oriundo do Direito Romano, consagrado no ordenamento
jurídico português desde então, tendo sido prevista desde logo nas Ordenações
Manuelinas e Filipinas com o objectivo de conservar ou defender bens públicos.
Foi novamente consagrada na Carta Constitucional de 1824, então circunscrita a
certos crimes praticados por juízes, e depois alargada no seu âmbito de
aplicação pelo Código Administrativo de 1842, aplicando-se também ao controlo jurisdicional
da legalidade dos actos da Administração Pública. Finalmente, no Código
Administrativo de 1878, considerou-se que esta acção podia ainda suprir as
omissões da Administração Local.
A Constituição da República Portuguesa veio
reconhecer o direito fundamental de acção popular ao consagrar instrumentos de
natureza jurídica que permitem aos cidadãos um papel activo na defesa dos seus
interesses.
Inserido na Parte I – Direitos e Deveres
Fundamentais – do Título II - Direitos, Liberdades e Garantias – do Capítulo II
– Direitos, Liberdades e Garantias de Participação Política – este direito foi
estabelecido no n.º3 do art. 52º, redigido nos seguintes termos:
“É conferido a todos, pessoalmente ou através
de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular
nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o
lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover
a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracçõaes contra a saúde
pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do
ambiente e do património cultural;
b)Assegurar
a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.
Deste preceito resulta que o a acção
popular é um direito fundamental que pode ser exercido por qualquer cidadão ou
associações, associações estas que tanto podem ser destinadas à prossecução dos
interesses exemplificativamente enumerados no preceito, ou outras de cariz
egoísta. O fim desta acção será o de proteger interesses difusos tais como os
de saúde pública, direitos dos consumidores, qualidade de vida, e outros, isto
é, interesses de todas as pessoas que integram uma comunidade.
Podemos ainda retirar desta leitura que as
actuações lesivas dos interesses em causa podem ser imputadas a entidades públicas
ou privadas.
Mais ainda, a acção pode ter eficácia
preventiva, no sentido em que pretende inibir determinado comportamento,
repressiva, por querer eliminar actos administrativos, ou indemnizatória, por
pretender determinada compensação. Esta indemnização será devida ao/s lesado/s,
que pode(m) ou não corresponder aos autores da acção.
A acção popular materializa-se num
alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos,
independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com
os interesses em causa.
Os interesses difusos encontram-se
radicados na própria sociedade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade
indefinida de sujeitos, reportando-se a bens indivisíveis e insusceptíveis de
apropriação individual por cada um dos cidadãos.
O direito de acção popular aparece, pois,
como um instrumento particular adequado à natureza dos bens difusos, permitindo
que qualquer cidadão desencadeie os mecanismos processuais adequados à tutela
de bens de natureza essencialmente social e colectiva.
Sob pena de inconstitucionalidade por
omissão, o legislador concretizou a cláusula constitucional através da Lei n.º
83/95 de 31 de Agosto – Lei de Acção Popular.
O regime jurídico aqui estabelecido visa a
protecção dos já referidos interesses públicos, como sejam os de saúde pública,
direitos dos consumidores, qualidade de vida, preservação do ambiente e do
património cultural.
Em termos de legitimidade processual
activa, esta é conferida a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis, às
associações e fundações defensoras dos interesses referidos (art.2º, n.º1), às autarquias
locais, relativamente aos interesses de que sejam titulares residentes na área
da sua circunscrição (art.2º, nº2), e ao Ministério Público (art.16º).
Relativamente às associações e fundações,
estabelece o art.3º que a sua legitimidade depende da verificação de personalidade
jurídica, da previsão desta legitimidade nas suas atribuições e objectivos
estatuários, e do não exercício de qualquer tipo de actividade profissional concorrente
com empresas ou profissionais liberais.
Para além da norma sobre legitimidade, são
ainda de frisar outras, de relevante importância. Desde logo, segundo os art.13º,
17º e 18º, o juiz assume uma intervenção activa. Assim é, pois, desde logo,
indefere a petição quando seja manifestamente improvável a procedência do pedido.
Mais, o juiz promove a recolha de provas e pode conferir efeito suspensivo a um
recurso, de modo a evitar dano irreparável ou de difícil reparação.
Dos art.14º e 19º retiramos que com este
sistema o autor representa, com dispensa de mandato, todos os demais titulares
dos direitos e interesses em causa que não tenham exercido o direito de
auto-exclusão do art.15º. Por outro lado, e se assim é, o caso julgado
abrangerá todos os titulares destes direitos que não tenham exercido o direito
de auto-exclusão. Neste sentido, a sentença será publicada, a expensas da parte
vencida, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos
interessados no seu conhecimento.
Outra questão relevante é o facto de o
autor se encontrar isento do pagamento de taxas de justiça iniciais e de custas
processuais a final, mesmo em caso de procedência parcial do pedido, conforme o
disposto no art.20º, n.º 1 e 2. Caso haja improcedência total, o autor será
condenado em montante a fixar pelo julgado entre um décimo e metade das custas
que normalmente seriam devidas.
Em termos indemnizatórios, fixa o art.22º
que, por um lado, caso haja um interesse individual, a condenação do causador
dos danos origina um dever de indemnizar o ou os lesados; por outro lado, caso
a indemnização seja pela violação de interesses de titulares não
individualmente identificados, haverá antes ua indemnização fixada globalmente,
pertencente à comunidade.
Para além da responsabilidade civil
objectiva, é ainda prevista, no art.23º, uma responsabilidade civil objectiva,
que tem por fim a indemnização por danos independentemente de culpa, sempre
que, por acções ou omissões do agente tenha resultado ofensa de direitos ou
interesses protegidos por esta Lei.
Finalmente, parece de especial relevância a
norma do art.25º segundo a qual os titulares do direito de acção popular têm o
direito de denúncia ou participação ao Ministério Público, por violação dos
interesses previstos nesta Lei que revistam natureza penal.
Também no Código de Processo nos Tribunais
Administrativos e Fiscais se estabeleceu no art.9º um princípio geral em
matéria de legitimidade activa que, em correspondência com a norma do art.31º do
Código de Processo Civil, congrega as duas formas típicas de legitimidade directa
– uma baseada na titularidade da relação controvertida, e a outra na
titularidade de um interesse supra individual e estende ao Ministério Público a
legitimidade para propor as acções a que se refere o n.º2 do mesmo artigo 9º.
Dispõe tal número que “independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa,
bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as
autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e
intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares
destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a
saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a
qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões
Autónomas e das autarquias locais”.
Ora, num Estado de Direito, o Contencioso
Administrativo tem, para além da função de protecção plena e efectiva dos
direitos dos particulares, uma função objectiva de tutela da legalidade e do
interesse público. Isto visto, vem tornar sujeito activo, entre outros, o autor
popular, permitindo uma sua intervenção na defesa de direitos, isto é, da
legalidade e do interesse público.
Parece
então, ao se referir que há uma tal legitimidade “independentemente de terem interesse directo na demanda”, que o
autor popular prossegue a tutela objectiva de bens e valores constitucionalmente
protegidos, sejam estes em domínios de saúde pública, urbanismo, ordenamento do
território, ambiente ou património cultural, quer para a defesa de bens na
titularidade do Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias.
A acção do autor popular é então
complementar da protecção jurídico-subjectiva prosseguida pelo Contencioso
Administativo quando prossegue a protecção dos direitos dos particulares, ao
prosseguir agora a tutela directa da legalidade e interesse público.
Podemos olhar agora para as várias acções
do Contencioso Administrativo, para perceber onde é que esta legitimidade do
autor popular surge repetida:
Desde logo podemos olhar para as diversas acções
administrativas especiais. Aqui encontramos as acções de:
·
Anulação
de um acto administrativo ou declaração da sua inexistência;
·
Condenação
à prática de um acto administrativo legalmente devido;
·
Declaração
de ilegalidade de normas regulamentares ilegais;
·
Declaração
de ilegalidade pela não emissão de regulamentos.
Quanto à impugnação de actos administrativos,
as regras de legitimidade encontram-se nos art.55º a 57º. Neste sentido
interessa-nos especialmente o art.55º, n.º1, al. f) e n.º2, que vem considerar
duas modalidades de acção popular.
Encontramos, primeiro, uma acção popular
genérica que remete para o já referido art.9º, n.º2, que vem englobar
particulares e pessoas colectivas que actuem, de forma objectiva, para a defesa
da legalidade e do interesse público, independentemente do interesse na
demanda.
De seguida, encontramos a acção popular de âmbito
autárquico, segundo a qual “qualquer
eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as
deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sefiadas na
circunscrição onde se encontre recenseado”. Ainda assim, parece que esta
previsão foi absorvida pela acção popular genérica, uma vez que preenche os
seus amplos requisitos de admissibilidade.
Quanto à condenação à prática de acto
devido, as normas de legitimidade encontram-se no art.68º. Também aqui a al. d)
do n.º1 remete para o art.9º, n.º2, gozando então o autor popular de
legitimidade para a apresentação de pedidos de condenação à prática de actos
administrativos devidos. No entanto, esta legitimidade é discutível. É que, uma
vez estando em causa uma acção que está claramente no âmbito de pedidos
vocacionados para a tutela de direitos subjectivos, não parece adequada a
decisão legislativa de alargá-la ao autor popular, que devia apenas prosseguir
a defesa da legalidade e interesse público. Há pois uma contradição entra a
natureza do autor popular e esta sua atribuição. Como solução, propõe-se que se
aplique ao autor popular as limitações consagradas para o autor público, isto
é, que a sua intervenção só deva ter lugar quando o dever de praticar o acto
resulte directamente da lei e esteja em caus a tutela de direitos fundamentais,
ou interesse público especialmente relevante.
Passando para a impugnação de normas regulamentares,
e olhando para a questão da legitimidade e procedibilidade dos regulamentos,
encontramos no art.73º regras diferenciadas consoante o autor da acção. Nomeadamente,
estabelece o art. 73º, nº1, que, se se tratar de acção popular, só há legitimidade
quando tenha antes havido três sentenças de desaplicação no caso concreto, ou
que se trate de regulamento imediatamente exequível (art.73º, n.º2).
Na declaração de ilegalidade por omissão, o
art.77º, nº1 vem repetir as regras gerais da legitimidade da acção popular, não
pretendo estabelecer nenhum regime específico. Assim se entende por conter uma
referência expressa à questão da legitimidade, em que é mencionado “o Ministério Público, as demais pessoas e
entidades defensoras dos interesses referidos n.º2 do artigo 9º. (…)”.
Olhando agora para a acção administrativa
comum, e, em concreto, para o art. 40º, nº1, al. b), vemos que o autor popular
será dotado de legitimidade processual no que respeita a pedido relativos à
validade, total ou parcial, dos contratos da função administrativa.
Também no que respeita aos pedidos
relativos à execução dos contratos da função administrativa, encontramos
semelhante regra na al. d) do art.40º, n.º 2.
Tudo visto, podemos concluir que o autor
popular é uma figura de especial relevância no nosso ordenamento jurídico, com
legitimidade para intentar as mais diversas acções no âmbito do Contencioso
Administrativo, vindo assim demonstrar que, aliada à protecção subjectiva dos
direitos dos particulares, existe uma a forte tutela objectiva da legalidade e
interesse público a ser prosseguida por qualquer cidadão.
Inês Metello - 140111090
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