quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O Herói Popular

- Considerações acerca do regime jurídico da acção popular -

Olhando numa perspectiva histórica, a acção popular é um instituto oriundo do Direito Romano, consagrado no ordenamento jurídico português desde então, tendo sido prevista desde logo nas Ordenações Manuelinas e Filipinas com o objectivo de conservar ou defender bens públicos. Foi novamente consagrada na Carta Constitucional de 1824, então circunscrita a certos crimes praticados por juízes, e depois alargada no seu âmbito de aplicação pelo Código Administrativo de 1842, aplicando-se também ao controlo jurisdicional da legalidade dos actos da Administração Pública. Finalmente, no Código Administrativo de 1878, considerou-se que esta acção podia ainda suprir as omissões da Administração Local.

A Constituição da República Portuguesa veio reconhecer o direito fundamental de acção popular ao consagrar instrumentos de natureza jurídica que permitem aos cidadãos um papel activo na defesa dos seus interesses.
Inserido na Parte I – Direitos e Deveres Fundamentais – do Título II - Direitos, Liberdades e Garantias – do Capítulo II – Direitos, Liberdades e Garantias de Participação Política – este direito foi estabelecido no n.º3 do art. 52º, redigido nos seguintes termos:

É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracçõaes contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;
b)Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.

Deste preceito resulta que o a acção popular é um direito fundamental que pode ser exercido por qualquer cidadão ou associações, associações estas que tanto podem ser destinadas à prossecução dos interesses exemplificativamente enumerados no preceito, ou outras de cariz egoísta. O fim desta acção será o de proteger interesses difusos tais como os de saúde pública, direitos dos consumidores, qualidade de vida, e outros, isto é, interesses de todas as pessoas que integram uma comunidade.
Podemos ainda retirar desta leitura que as actuações lesivas dos interesses em causa podem ser imputadas a entidades públicas ou privadas.
Mais ainda, a acção pode ter eficácia preventiva, no sentido em que pretende inibir determinado comportamento, repressiva, por querer eliminar actos administrativos, ou indemnizatória, por pretender determinada compensação. Esta indemnização será devida ao/s lesado/s, que pode(m) ou não corresponder aos autores da acção.

A acção popular materializa-se num alargamento da legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os interesses em causa.
Os interesses difusos encontram-se radicados na própria sociedade, deles sendo titular, afinal, uma pluralidade indefinida de sujeitos, reportando-se a bens indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual por cada um dos cidadãos.
O direito de acção popular aparece, pois, como um instrumento particular adequado à natureza dos bens difusos, permitindo que qualquer cidadão desencadeie os mecanismos processuais adequados à tutela de bens de natureza essencialmente social e colectiva.

Sob pena de inconstitucionalidade por omissão, o legislador concretizou a cláusula constitucional através da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto – Lei de Acção Popular.
O regime jurídico aqui estabelecido visa a protecção dos já referidos interesses públicos, como sejam os de saúde pública, direitos dos consumidores, qualidade de vida, preservação do ambiente e do património cultural.
Em termos de legitimidade processual activa, esta é conferida a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis, às associações e fundações defensoras dos interesses referidos (art.2º, n.º1), às autarquias locais, relativamente aos interesses de que sejam titulares residentes na área da sua circunscrição (art.2º, nº2), e ao Ministério Público (art.16º).
Relativamente às associações e fundações, estabelece o art.3º que a sua legitimidade depende da verificação de personalidade jurídica, da previsão desta legitimidade nas suas atribuições e objectivos estatuários, e do não exercício de qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
Para além da norma sobre legitimidade, são ainda de frisar outras, de relevante importância. Desde logo, segundo os art.13º, 17º e 18º, o juiz assume uma intervenção activa. Assim é, pois, desde logo, indefere a petição quando seja manifestamente improvável a procedência do pedido. Mais, o juiz promove a recolha de provas e pode conferir efeito suspensivo a um recurso, de modo a evitar dano irreparável ou de difícil reparação.
Dos art.14º e 19º retiramos que com este sistema o autor representa, com dispensa de mandato, todos os demais titulares dos direitos e interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão do art.15º. Por outro lado, e se assim é, o caso julgado abrangerá todos os titulares destes direitos que não tenham exercido o direito de auto-exclusão. Neste sentido, a sentença será publicada, a expensas da parte vencida, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados no seu conhecimento.  
Outra questão relevante é o facto de o autor se encontrar isento do pagamento de taxas de justiça iniciais e de custas processuais a final, mesmo em caso de procedência parcial do pedido, conforme o disposto no art.20º, n.º 1 e 2. Caso haja improcedência total, o autor será condenado em montante a fixar pelo julgado entre um décimo e metade das custas que normalmente seriam devidas.
Em termos indemnizatórios, fixa o art.22º que, por um lado, caso haja um interesse individual, a condenação do causador dos danos origina um dever de indemnizar o ou os lesados; por outro lado, caso a indemnização seja pela violação de interesses de titulares não individualmente identificados, haverá antes ua indemnização fixada globalmente, pertencente à comunidade.
Para além da responsabilidade civil objectiva, é ainda prevista, no art.23º, uma responsabilidade civil objectiva, que tem por fim a indemnização por danos independentemente de culpa, sempre que, por acções ou omissões do agente tenha resultado ofensa de direitos ou interesses protegidos por esta Lei.
Finalmente, parece de especial relevância a norma do art.25º segundo a qual os titulares do direito de acção popular têm o direito de denúncia ou participação ao Ministério Público, por violação dos interesses previstos nesta Lei que revistam natureza penal.

Também no Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais se estabeleceu no art.9º um princípio geral em matéria de legitimidade activa que, em correspondência com a norma do art.31º do Código de Processo Civil, congrega as duas formas típicas de legitimidade directa – uma baseada na titularidade da relação controvertida, e a outra na titularidade de um interesse supra individual e estende ao Ministério Público a legitimidade para propor as acções a que se refere o n.º2 do mesmo artigo 9º.
Dispõe tal número que “independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”.
Ora, num Estado de Direito, o Contencioso Administrativo tem, para além da função de protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, uma função objectiva de tutela da legalidade e do interesse público. Isto visto, vem tornar sujeito activo, entre outros, o autor popular, permitindo uma sua intervenção na defesa de direitos, isto é, da legalidade e do interesse público.
 Parece então, ao se referir que há uma tal legitimidade “independentemente de terem interesse directo na demanda”, que o autor popular prossegue a tutela objectiva de bens e valores constitucionalmente protegidos, sejam estes em domínios de saúde pública, urbanismo, ordenamento do território, ambiente ou património cultural, quer para a defesa de bens na titularidade do Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias.
A acção do autor popular é então complementar da protecção jurídico-subjectiva prosseguida pelo Contencioso Administativo quando prossegue a protecção dos direitos dos particulares, ao prosseguir agora a tutela directa da legalidade e interesse público.

Podemos olhar agora para as várias acções do Contencioso Administrativo, para perceber onde é que esta legitimidade do autor popular surge repetida:

Desde logo podemos olhar para as diversas acções administrativas especiais. Aqui encontramos as acções de:
·         Anulação de um acto administrativo ou declaração da sua inexistência;
·         Condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido;
·         Declaração de ilegalidade de normas regulamentares ilegais;
·         Declaração de ilegalidade pela não emissão de regulamentos.

Quanto à impugnação de actos administrativos, as regras de legitimidade encontram-se nos art.55º a 57º. Neste sentido interessa-nos especialmente o art.55º, n.º1, al. f) e n.º2, que vem considerar duas modalidades de acção popular.
Encontramos, primeiro, uma acção popular genérica que remete para o já referido art.9º, n.º2, que vem englobar particulares e pessoas colectivas que actuem, de forma objectiva, para a defesa da legalidade e do interesse público, independentemente do interesse na demanda.
De seguida, encontramos a acção popular de âmbito autárquico, segundo a qual “qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sefiadas na circunscrição onde se encontre recenseado”. Ainda assim, parece que esta previsão foi absorvida pela acção popular genérica, uma vez que preenche os seus amplos requisitos de admissibilidade.

Quanto à condenação à prática de acto devido, as normas de legitimidade encontram-se no art.68º. Também aqui a al. d) do n.º1 remete para o art.9º, n.º2, gozando então o autor popular de legitimidade para a apresentação de pedidos de condenação à prática de actos administrativos devidos. No entanto, esta legitimidade é discutível. É que, uma vez estando em causa uma acção que está claramente no âmbito de pedidos vocacionados para a tutela de direitos subjectivos, não parece adequada a decisão legislativa de alargá-la ao autor popular, que devia apenas prosseguir a defesa da legalidade e interesse público. Há pois uma contradição entra a natureza do autor popular e esta sua atribuição. Como solução, propõe-se que se aplique ao autor popular as limitações consagradas para o autor público, isto é, que a sua intervenção só deva ter lugar quando o dever de praticar o acto resulte directamente da lei e esteja em caus a tutela de direitos fundamentais, ou interesse público especialmente relevante.

Passando para a impugnação de normas regulamentares, e olhando para a questão da legitimidade e procedibilidade dos regulamentos, encontramos no art.73º regras diferenciadas consoante o autor da acção. Nomeadamente, estabelece o art. 73º, nº1, que, se se tratar de acção popular, só há legitimidade quando tenha antes havido três sentenças de desaplicação no caso concreto, ou que se trate de regulamento imediatamente exequível (art.73º, n.º2).

Na declaração de ilegalidade por omissão, o art.77º, nº1 vem repetir as regras gerais da legitimidade da acção popular, não pretendo estabelecer nenhum regime específico. Assim se entende por conter uma referência expressa à questão da legitimidade, em que é mencionado “o Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos n.º2 do artigo 9º. (…)”.

Olhando agora para a acção administrativa comum, e, em concreto, para o art. 40º, nº1, al. b), vemos que o autor popular será dotado de legitimidade processual no que respeita a pedido relativos à validade, total ou parcial, dos contratos da função administrativa.
Também no que respeita aos pedidos relativos à execução dos contratos da função administrativa, encontramos semelhante regra na al. d) do art.40º, n.º 2.


Tudo visto, podemos concluir que o autor popular é uma figura de especial relevância no nosso ordenamento jurídico, com legitimidade para intentar as mais diversas acções no âmbito do Contencioso Administrativo, vindo assim demonstrar que, aliada à protecção subjectiva dos direitos dos particulares, existe uma a forte tutela objectiva da legalidade e interesse público a ser prosseguida por qualquer cidadão. 

Inês Metello - 140111090

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