Já ultrapassamos a dualidade conceptual esquizofrénica?
Conceito Bifronte? Monstro de duas caras? É com estes termos que o Professor Vasco Pereira da Silva caracteriza a figura do Contrato Administrativo. Como a maioria das questões é a dogmática jurídico-administrativa francesa responsável pelas influências sofridas no domínio contratual. Na verdade, esta é a mãe do contrato administrativo. É na própria noção de contrato administrativo que retiramos a “dualidade esquizofrénica” que a compõe. O Professor Vasco Pereira da Silva caracteriza as transformações da reforma do Contencioso Administrativo como um “retorno à origens” originando um “novo recomeço”. Assim, dá-se os primeiros passos no sentido do renascimento da teoria geral dos contratos no domínio da função administrativa. A primeira manifestação da dicotomia esquizofrénica ao nível dos contratos celebrados pela Administração Pública verificamos na existência de:
1. Contrato dito administrativo vs. contrato de direito privado da Administração
Vários motivos de ordem prática são apontados como estando na origem desta dicotomia. Os contratos ditos administrativos correspondem ao exercício de privilégios exorbitantes ou de poderes especiais da Administração exigindo um específico regime jurídico já os contratos de direito privado da Administração são simples contratos em que as autoridades administrativas “despiam as suas vestes de autoridade” actuando como simples privados (“gestão privada”) sendo o regime jurídico semelhante ao de qualquer outro contrato.
É o momento
da construção doutrinária do contrato administrativo de tipo “francês”
denominado como “exorbitante” pois corresponde “a privilégios exorbitantes, ”procurando
fazer corresponder à especialidade do foro um novo fundamento substantivo.
Aparece uma doutrina da contratação administrativa onde se denota uma “fragmentação
da imagem do corpo”. A separação esquizofrénica entre estes dois tipos de
contratos tinha consequências:
1. Substantiva: considerava-se
dever existir um regime jurídico especial-de direito público – para os
contratos administrativos e outro comum – de direito privado- para os demais
contratos da Administração. Os contratos administrativos distinguiam-se dos
outros em razão de critérios autoritários tendo a Administração poderes
especiais.
2. Processuais
(contencioso): A natureza do contrato administrativo implicava que os
litígios relativos à sua interpretação, validade ou execução fossem da
competência dos tribunais administrativos enquanto que os contratos de direito
privado da Administração eram da competência dos Tribunais comuns.
A cada vez
mais generalizada utilização de formas contratuais pela Administração Pública ,
enquanto modo normal do exercício da função ao lado, de uma multiplicidade de
outras formas de actuação vai originar como ensina Maria João Estorninho um movimento
de sentido convergente, através do qual se tem vindo a reconhecer que, nem o
contrato administrativo é tão exorbitante quanto isso nem os contratos privados
da Administração são exactamente iguais aos contratos celebrados entre
particulares, o que significa que uma eventual aproximação entre todos os
contratos da Administração. Por isso verificamos uma tendência no sentido da “unidade” de tratamento de toda a actividade
contratual da Administração Pública é acção da doutrina e do Direito Europeu. Houve
uma aproximação de todas as formas contratuais no exercício da função
administrativa decorrente da relativização do conceito francês de contrato
administrativo comparativamente ao contrato de direito público alemão. Historicamente,
verificou-se que a construção europeia implicava a existência de regras comuns
em matéria de contratação administrativa. Daqui resultou o surgimento de
múltiplas fontes de Direito Administrativo Europeu, privilegiando a forma da directiva
(regime comum da contratação pública) a nível substantivo e de procedimento
como de processo. As mais revelantes são directivas 2004/18/CE e a 2004/17/CE. A situação vigente,
deixa para trás inúmeros conflitos o que originou uma tomada de posição do
legislador: antecipar parcialmente a entrada em vigor da reforma do Contencioso
Administrativo onde criou um regime transitório para o domínio do contencioso pré-contratual,
Hoje em dia podemos dizer que o cpa regula o contencioso pré-contratual,
enquanto processo urgente (100º e ssg),consagrando um contencioso de plena
jurisdição respeitante aos litígios emergentes das relações contratuais
administrativas, seja pela via da acção comum, seja da especial. Isto fez com
que existisse a criação de um verdadeiro Direito Europeu de Contratação Pública
onde encontramos as bases gerais dos contratos da função administrativa em
todos os países da Europa. Assim, falamos num regime jurídico comum europeu,
estabelecido para certos tipos de contratos, em razão da sua importância para o
exercício da função administrativa e independentemente da respectiva
qualificação nacional ou para determinados sectores da actividade, em razão dos
fins prosseguidos de modo a poder valer tanto para os ordenamentos dos países
de matriz francesa, como os da variante germânica, como ainda para os da
“common law”. Na verdade, percebemos que a matéria da contratação pública
europeia seja delimitada, sobretudo, com base em critérios materiais, tanto os
relativos à natureza da actividade, como os respeitantes aos fins prosseguidos.
Paralelamente à “integração vertical”, decorrente da aplicabilidade das fontes
comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada um dos Estados europeus, encontramos,
neste domínio, um fenómeno de “integração horizontal”.
Efectivamente, nas palavras de Cassese este fenómeno consiste na convergência
das administrações e das instituições nacionais, pois, a partir do momento em
que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que tendam também a
convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o direito dos
contratos das administrações públicas dos diferentes estados tenda a convergir
para um modelo unitário. Existe cada vez mais uma tendência para
a unidade dos contratos que correspondem ao exercício da função administrativa (a
nível do direito substantivo e procedimento ou do processo). Em Portugal,
o fenómeno da europeização tem sido um importante eixo da transformação do
Direito Administrativo português da contratação pública. O movimento unificador
da contratação pública ditado pelo Direito Europeu, manifestou-se primeiro na
legislação relativa aos procedimentos pré-contratuais e, depois, na legislação
do contencioso administrativo, que eliminou, para efeitos processuais, a
categoria dos contratos administrativos (artigo 4º, nº1 alínea b), e) e f) do
CPTA). O facto é que o CCP vigente nas palavras de Vasco Pereira da Silva fica
a meio-caminho entre a adopção de um conceito genérico de contrato público, em
sentido europeu, e a manutenção da dualidade esquizofrénica originária. Por um
lado, o legislador estabelece pela primeira vez no Direito Administrativo
nacional, uma disciplina geral completa de todos os contratos em que intervém a
administração, ao mesmo tempo que uniformiza e simplifica a tipologia e a
tramitação dos procedimentos pré-contratuais e racionaliza o regime material a
contratação pública. Por outro lado, o CCP persiste em manter a dualidade
conceptual esquizofrénica entre contratos administrativos e outros contratos de
administração (artigo 1º, nº 1 do CCP), mesmo se a definição do dito contrato
administrativo (artigo 1º, nº 6) fornece argumentos para o esbatimento das
fronteiras conceptuais ao nível da totalidade da contratação pública, assim
como alarga o respectivo âmbito, que passa a incluir os contratos de aquisição
de locação de bens e aquisição de bens móveis e serviços (artigos 431º, 437º,
450º do CCP).
Em suma, o Professor Vasco Pereira da Silva reconhece que falta ao
legislador português “psicanálise cultural” na medida em que mantem em termos
substantivos a dualidade esquizofrénica entre o contrato administrativo e os
demais contratos da Administração .O papel cabe agora à doutrina e jurisprudência
tirar as devidas conclusões no sentido da unificação do regime jurídico de toda
a contratação administrativa.
Margarida Quintino: 140109036
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