domingo, 2 de novembro de 2014

DECLARAÇÃO DE ÓBITO DO RECURSO HIERÁRQUICO NECESSÁRIO

O art.º 268º nº4 da Constituição veio ferir de inconstitucionalidade as normas que previam o recurso hierárquico necessário, ou seja, a exigência do prévio esgotamento das vias administrativas como condição de acesso aos tribunais para impugnar os actos dos subalternos.
O Professor VASCO PEREIRA DA SILVA defendia, mesmo antes da reforma, a inconstitucionalidade desta exigência, uma vez que violava: o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art.º 268/4 da CRP), porque consubstanciava uma negação do direito fundamental de recurso contencioso; o princípio da separação de poderes (art.º 114º, 205º e seguintes e 266º e seguintes da CRP, havendo uma promiscuidade entre Administração e Justiça, que vinha já dos traumas da infância difícil do contencioso administrativo, já que se precludia o direito de acesso ao tribunal pela não utilização de uma garantia administrativa; o princípio da desconcentração administrativa (art.º 267/2 da CRP) que implica a possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da hierarquia administrativa que permite o recurso hierárquico e a revogação do acto pelo superior; e, por último, o princípio da efectividade da tutela (art.º 268/4 da CRP), uma vez que havia um efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa no caso de não ter havido interposição prévia de recurso hierárquico no prazo de trinta dias (equivalia na prática à inutilização da possibilidade de exercício do direito, equiparável à lesão do conteúdo essencial do direito).
No entanto, essa não era a posição defendida pela doutrina e jurisprudência (veja-se o Acórdão 499/96 do Tribunal Constitucional que se pronunciou pela não inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário).
Importa ressalvar que o recurso hierárquico necessário não dizia respeito à produção de efeitos do acto do subalterno, mas à sua impugnabilidade contenciosa, uma vez que no que concerne à produção de efeitos, o acto do subalterno era igual ao praticado pelo superior hierárquico.
A reforma do contencioso veio, dando razão ao entendimento do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, afastar a necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça administrativa, configurando uma verdadeira declaração de óbito desta exigência.
Não há qualquer referência ao recurso hierárquico necessário no CPTA e este afastamento manifesta-se em várias disposições. O art.º 51º nº1 estabelece os critérios que determinam qual o acto administrativo impugnável (eficácia externa na acção jurídica objectiva e lesão de direitos na acção jurídica subjectiva) e os actos dos subalternos são susceptíveis de preencher esses critérios de impugnabilidade, podendo ser autonomamente impugnados. O art.º 59º nº4 estatui um efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa em caso de utilização das garantias administrativas (o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA entende que para garantir a utilidade das garantias administrativas, onde por vezes há inercia e seguem uma lógica de não-contradição, poderia ter sido estabelecido um efeito suspensivo da própria execução da sentença). O art.º 59º nº5 estabelece que, independentemente do uso da via graciosa, o particular pode aceder de imediato à justiça administrativa.
Assim, há uma desnecessidade do recurso hierárquico que se manifesta num duplo sentido: não é necessária a sua utilização prévia e se optar por usar previamente, o particular não tem de esperar pelo resultado para impugnar contenciosamente.
Apesar de ser pacífico que o CPTA afastou o recurso hierárquico necessário, os Professores MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e FREITAS DO AMARAL fazem uma interpretação restritiva deste regime jurídico, dizendo que está apenas em causa a revogação da regra geral que exigia o recurso hierárquico prévio à impugnação contenciosa, mas não de eventuais regras especiais que estabeleçam essa exigência, que só poderiam ser afastadas mediante disposição expressa, continuando a haver recurso hierárquico necessário nos casos previstos na lei. No entanto, o abandono no CPTA do recurso hierárquico necessário leva à caducidade das normas especiais por falta de objecto, porque a eventual exigência de recurso hierárquico necessário em normas especiais não tem efeitos no contencioso e, para além disso, o art.º 7º estabelece que o mérito deve prevalecer sobre as formalidades, devendo ser dispensadas diligências inúteis, que seria o caso de exigir o uso de uma garantia administrativa prévia!
Assim, é necessário rever o Código do Procedimento Administrativo para o compatibilizar com o CPTA, uma vez que ainda faz menção ao recurso hierárquico necessário (veja-se os arts.º 167º e 170º). Enquanto não for feito, o particular lesado por um acto de um subalterno pode: impugnar administrativamente, esperar pelo resultado e impugnar contenciosamente; impugnar apenas contenciosamente; ou impugnar administrativamente e aceder imediatamente ao tribunal, sem esperar pela decisão do recurso hierárquico.

Em suma, o recurso hierárquico necessário é inconstitucional, ilegal e não é útil do ponto de vista da protecção dos particulares, não havendo razoes para os admitir em caso algum!

Inês Chorro - 140111062

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