quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A Esquizofrenia dos Contratos Públicos

A noção de “Contrato” no Direito Administrativo é marcada por uma infância e puberdade altamente esquizofrénicas – sendo que esta esquizofrenia ainda não está totalmente ultrapassada.
Ainda hoje há autores que confundem contrato administrativo (de direito público e da competência dos tribunais administrativos) e contratos de direito privado sobre matéria de direito publico (regulados pelo direito privado e sujeitos ao controlo dos tribunais judiciais).
Esta distinção nasceu no Século XIX em França por razões puramente processuais (século XIX), sendo que os primeiros problemas surgiram nos contratos de fornecimento de gás e carvão para efeitos de iluminação publica.
Entendeu-se que por razões de ordem prática, aqueles contratos que visavam a satisfação de necessidades imperiosas e que envolviam montantes muito elevados, deviam estar sujeitos ao chamado “privilegio de foro” que caracterizava a administração pública e portanto alargou-se essa excepção para alguns contratos que envolviam a administração.
Estava em causa a melhor prossecução do direito público e a melhor utilização dos capitais públicos e portanto a administração estaria melhor protegida se houvesse o tal alargamento do âmbito.
Contudo só no século XX surge uma teorização do contrato administrativo através de Maurice Hauriou. No início do século XX em França vai se procurar teorizar aquela diferença que surgiu por razões práticas, tentando identificar uma razão substantiva para essa distinção: surgem as construções autoritárias de contratos administrativos.
Esta primeira teorização criou uma esquizofrenia em França e nos países de raiz latina, que levava a uma dualidade conceptual entre os contratos ditos administrativos regulados pelo direito público e da competência dos tribunais administrativos e, por outro lado, os outros sujeitos as regras de direito privado e à jurisdição dos tribunais comuns.
Esta teorização é contraditória porque era um acordo de vontades, mas por outro lado o particular ficava sujeito ao poder “era um espécie de Batman com cara de Joker” como ironizou o Professor Vasco Pereira da Silva. Foi esta teorização contraditória que marcou o Direito Francês.
Foi apenas nos anos 80 que, um pouco por toda a parte, começaram a surgir sectores da doutrina a defender a unidade no universo da contratação pública.
Dizia-se em primeiro lugar que as cláusulas dos contratos ditos de direito administrativo nada tinham de exorbitante,  a doutrina vinha dizendo que o contrato era idêntico quando celebrado pelo particular ou pela administração (essas pretensas exorbitâncias existiam em qualquer das referidas duas modalidades de contratos) - em PT o contrato mais exorbitante “empreitada de obras públicas” estava melhor regulado no Direito Administrativo do que no Direito Privado (muitas vezes até havia remissão nos contratos de direito privado para o regime das empreitadas de obras públicas).
A Professora Maria João Estorninho foi das primeiras a discutir esta matéria da contratação pública em Portugal, dizendo que esses contratos nada tinham de exorbitante e podiam ser iguais nos contratos de direito público e nos contratos de direito privado. Veio também dizer que os contratos ditos de direito privado, não eram verdadeiramente privados: envolviam gastos de dinheiro público e envolviam actos de Direito Público.
Disse-se que era preciso criar um regime comum e unitário para toda a contratação efectuada no seio da administração pública. Esta tese em Portugal encontrou alguns seguidores, entre os quais o Professor Vasco Pereira da Silva, João Caupers, Marcelo Rebelo de Sousa, André Salgado Matos, sendo que a partir dos anos 80 houve uma tendência para entender que aquela esquizofrenia não fazia sentido e que se devia caminhar no sentido de uma unificação da contratação pública. Acrescente-se que também era defendido que devia haver uma unificação das normas procedimentais e processuais.
Mas apesar deste movimento ter sido importante, a grande alteração ocorreu com as Directivas Europeias – “um mercado único implica regras de contracção pública unitária”. E se havia regras comuns então era preciso encontrar critérios unitários para essa determinação. A UE deparou-se com o seguinte problema de não poder utilizar os esquemas dos diferentes países porque havia regimes substancialmente diferentes nos diversos estados-membros da UE (por exemplo, os países de tradição anglo-saxónica nem queriam ouvir falar em legislação da contratação publica).
Então a UE decidiu acolher uma noção ampla e inovadora de contrato público, que abrangeria  quer os tradicionalmente denominados contratos de direito administrativo, quer os contratos de direito privado. Estabeleceu alguns tipos contratuais que correspondiam a essa nova categoria e estabeleceu que em algumas áreas  todos esses contratos teriam características de contratos de direito público (sobretudo na área das telecomunicações).
Estas Directivas acabaram por colocar fim aquela distinção esquizofrénica - desapareceu também em Itália e Espanha bem como em Portugal; em França o desaparecimento tem sido menos obvio.
Se olharmos agora para a realidade portuguesa, vemos que esta dimensão europeia implicou muitas alterações: no início dos anos 90 surge um meio processual urgente no domínio pré-contratual (esta realidade correspondeu as primeiras directivas comunitárias) e portanto já antes de 2004 foi criado um meio processual urgente para o domínio do contencioso pré-contratual em geral; à medida que as directivas se foram sucedendo, surge não apenas um regime processual mas também um regime material da contratação pública e que obviamente tem consequências no âmbito do contencioso administrativo (todos os contratos são objecto do contencioso administrativo).
Em 2008 surgiu um Código da Contratação Pública que colocou oficialmente fim aquela esquizofrenia e estabeleceu um regime unitário imposto pelo Direito Europeu para toda a contratação pública, com regras processuais e com regras materiais. No entanto, entendeu-se que uma parcela desses contratos públicos, devia manter a designação de “contratos administrativos” (legislador sem a psicanalise em dia segundo o Professor VPS) e portanto acabou com a esquizofrenia sem o fazer totalmente porque continua a chamar erradamente a alguns contratos “contratos administrativos” ainda que em rigor sejam iguais aos outros e não haja mais do que uma espécie.
Há um género “contratos Públicos” e dentro desse género há varias espécies (do mesmo género) sendo uma delas a espécie dos “contratos administrativos”.
Isto permite que os autores que já antes defendiam um regime unitário em matéria de contratação publica, tenham hoje construído uma teoria geral dos contratos públicos que não assenta naquela distinção. Os que nos anos 80 defendiam ser correta a distinção esquizofrénica, deixam de ter a relevância que tinham no passado.

Professor sabe que está neste momento a ser discutida uma nova Directiva Europeia que vai ter consequências em matéria de contencioso administrativo. Vai haver significativas alterações no processo urgente em matéria de contencioso pré-contratual. Vai também ser colocado em causa o Principio do “concurso publico” em matéria de contratação pública.

Diogo Pinto 140111018

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