quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Contencioso Substantivo

É comum criticar-se o "Direito" por muitas vezes transparecer uma certa ideia de prevalência da forma sobre o fundo (precisamente o oposto de um dos mais importantes princípios consagrados no nosso Processo Civil).
Processo Civil esse, que, em virtude do artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, se aplica supletivamente ao Contencioso Administrativo.
Aliás, em bom rigor tal princípio decorrerá não só de um corolário do princípio da boa fé - transversal a toda a ordem jurídica - mas de um correcto acesso à justiça, previsto directamente na nossa Constituição.

Ora, a propósito dos pressupostos processuais dos vários meios de defesa que os particulares têm à sua disposição no Contencioso Administrativo em Portugal, é o requisito da oportunidade que quero aqui brevemente analisar. Em particular, as consequências do particular ter deixado passar o prazo legal para intentar a acção adequada à tutela do(s) seu(s) direito(s) em questão.

Tanto a acção administrativa comum (artigos 37º e seguintes), como a acção administrativa especial (46º e seguintes) prevêem como um dos pressupostos processuais transversais a todas as suas respectivas acções o pressuposto da oportunidade. Isto é claro.

Todavia, menos claro é o confronto jurídico que se faz em termos de princípios para efeitos de oportunidade.

O que é que - de facto - está em questão quando se fala na "oportunidade" que o particular deixou de aproveitar para tutelar os seus direitos?

Não será algo promíscuo e contra o tal princípio da justiça e de acesso a ela afirmar que, afinal, o particular não tem um verdadeiro direito na sua esfera jurídica, mas apenas algo provisório e frágil, que desaparece à mínima artimanha processual por parte do advogado da outra parte (pública, em princípio, mas que poderá também ser privada, nos termos da teoria do processo, por efeito de absorção)?

Olhando para o artigo 58º CPTA, que trata do pressuposto da oportunidade com aplicação geral - ainda que previsto sistematicamente apenas quanto à acção especial de impugnação de acto administrativo - compreende-se uma distinção feita pelo legislador a propósito da nulidade e inexistência do acto administrativo (não sujeita a prazo, 58º/1) e da mera anulabilidade do mesmo (58º/2).

Sem querer entrar na discussão acerca das invalidades administrativas, nomeadamente sobre se faz sentido distinguir entre invalidades; entre que tipo de invalidades e entre que tipo de regime a aplicar a diferentes (hipotéticas) invalidades, facto é que - regra geral - existe um prazo para que o particular intenta uma acção nos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Prazo esse, aliás, que é relativamente curto: 3 meses, salvo se for promovida pelo Ministério Público.

Quanto a este pressuposto da oportunidade, então, duas notas a fazer.

1. A lei prevê, desde logo, uma extensão destes prazos nos termos do artigo 58º/4, essencialmente aludindo a critérios de razoabilidade e proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu), nomeadamente nas alíneas a), b) e c) do referido número.

Tal facto demonstra, desde logo, que se quis mitigar a tal passagem do prazo de proposição de acções, atenuando-se um bocado aquela ideia de olhar para a segurança jurídica (que fundamenta desde logo a própria existência de prazos de prescrição e caducidade) de forma endeusada e equiparada a princípios visivelmente mais substanciais como seja a igualdade, o acesso ao direito e o acesso à justiça, a liberdade, a proporcionalidade e a prossecução de interesses públicos.

Admite-se que a conduta possa ter sido induzida em erro pela Administração (alínea a)); que o atraso deva ser considerado desculpável tendo em conta (apenas e exclusivamente) à ambiguidade do quadro normativo ou às dificuldades que se colocavam quanto à identificação ou qualificação do acto (alínea b)); e se se tiver verificado algum justo impedimento (alínea c)).

É de louvar que estejam previstas estas excepções no nosso CPTA, que são um verdadeiro banho de materialidade sobre um pestilento Código, que prefere ir remendando roupa velha com pedaços de tecido novos em vez de deitar fora a roupa desgastada de uma vez por todas e renovar o seu armário.


2. Mas há mais. Muito mais. Para grande desagrado dos defensores de uma visão anacrónica do Direito Administrativo (na linha de Otto Mayer e da "Eingriffsverwaltung" à boa maneira portuguesa), o CPTA veio consagrar no artigo 38º a grande consequência da passagem dos prazos de oportunidade. Mais importante do que a impugnação de um acto administrativo (necessariamente individual e concreto e, portanto, de aplicação inevitavelmente reduzida) é a existência de uma norma que consagra definitivamente a prevalência do fundo sobre a forma.
Uma norma que recorre aos mais arcaicos ensinamentos do Direito Romano e olha para o Direito como um veículo concretizador da Justiça.

E isto porquê?

Porque vem permitir que se faça uma discussão incidental acerca do Direito do caso, distinguindo claramente efeitos da falta de oportunidade para efeitos de segurança e efeitos da falta de oportunidade para efeitos de justiça. É esta a grande inovação do preceito.

Ainda que com o limite do número 2, concretizando o princípio da submissão aos limites substantivos, o artigo 38º vem admitir que o juiz conheça da ilegalidade de um acto administrativo que já não possa ser impugnado.

Esta norma vem permitir que o particular se possa fazer valer de uma acção de responsabilidade civil por danos causados por um acto administrativo, ainda que tenha passado já o prazo de proposição de acção (e sem prejuízo, naturalmente, da responsabilidade civil por perda de chance contra o seu advogado).

Vem-se, assim, dar um passo em frente rumo ao Direito Administrativo multipolar do séc. XXI, que tem o particular no seu centro, visando efectivamente a tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrada no 268º/4 da Constituição.


Miguel Baptista - 140111505





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