quinta-feira, 6 de novembro de 2014
Do juízo sobre o acto para o juízo sobre a relação administrativa
O Prof. VPS introduz a figura da condenação à prática de acto devido alertando para as consequências (positivas) que o mesmo causou na Administração Pública e no Contencioso Administrativo. A figura em questão, prevista nos artigos 66º e seguintes do CPTA, causou a seguinte mudança no panorama processual do Direito Administrativo: " [O] Contencioso Administrativo que, ao passar da mera anulação para a plena jurisdição, deixa de estar limitado na sua tarefa de julgamento, desta forma superando muitos dos respectivos "traumas de infância"". (Silva, Vasco Pereira de, "O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, pp. 317, 1º §).
Tradicionalmente rejeitado em nome do princípio da separação de poderes (à boa imagem do "trauma" que ouvimos falar desde o 2ºAno), o argumento fundamental utilizado para afastar a possibilidade de condenar a Administração Pública à prática de um acto - ainda que devido - era o seguinte:
- O juiz nunca poderia dar ordens à Administração, pois tal implicaria que o juiz se substituísse à Administração, invadindo "o domínio das escolhas remetidas por lei para a responsabilidade da Administração no domínio da discricionariedade administrativa". (Bem patente aqui a confusão entre julgar e administrar).
Esta era a concepção tradicional, suportada na "teoria do acto fingido", oriunda de França.
Dito isto, como apareceu então a acção de condenação à prática de acto devido? Ora, na sua génese está - de forma pouco surpreendente - uma inovação germânica: a "Verpflichtungsklage". Salienta o Prof. VPS duas razões para o surgimento desta figura de alargamento da protecção do particular:
1. A Alemanha do pós-guerra ocupada militarmente por forças aliadas de tradição de "common law" (EUA e RU);
2. O esforço intelectual de JELLINEK, que alertou para a completa inutilidade da anulação dos actos negativos.
Em Portugal, embora o artigo 69º LEPTA funcione como embrião para este alargamento da tutela dos particulares no âmbito do Contencioso Administrativo, é só após Revisão Constitucional de 1997 (em que o novo centro do Direito Administrativo passa efectivamente a ser a tutela dos direitos dos particulares, pelo número 4 do artigo 268º CRP) - e após um intenso "processo terapêutico"em que se discutiu o âmbito e estrutura da nova acção - que surge definitivamente a possibilidade de condenar a Administração à prática de um acto devido.
Nos termos do artigo 66º/1 CPTA, esta acção administrativa especial pode ser utilizada para obter a condenação da entidade competente à prática de um acto administrativo ilegalmente i) omitido ou ii) recusado.
Salienta o Professor Vasco Pereira da Silva que a regulamentação da acção de condenação à prática de acto devido implica uma valorização inovadora do pedido mediato (direito que visa tutelar) sobre o imediato (efeito pretendido), na medida em que "o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento". Daqui extrai o Prof. dois aspectos:
1. Objecto do processo não é o mesmo que acto administrativo, mas sim o direito do particular a determinada conduta da Administração;
2. Objecto do processo corresponde à pretensão do interessado, nomeadamente o direito subjectivo do particular no quadro da concreta relação jurídica administrativa.
Para além disso, a lei foi mais longe ainda ("para além do acto", como escreve o Professor), pois estatui no artigo 71º/1 que o Tribunal não se deve limitar a devolver a questão ao órgão administrativo competente, mas pronunciar-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do acto devido.
Quanto a este artigo 71º/1, dois interesses devem ser contraposto, parece-me.
Por um lado, razões de tutela do particular impõem que não haja um mero "chega para lá" do Tribunal, exigindo que a Administração se pronuncie de acordo com a pretensão material do interessado. Assume a prevalência da materialidade subjacente aqui uma posição importante, pois ao Tribunal cabe certificar-se de que as pretensões materiais - e não meramente formais - do interessado são tidas em conta. Servirá isto para impedir que a Administração use um qualquer argumento para indeferir a pretensão do interessado? Não parece, visto que o artigo 71º/1 pressupõe que a Administração já o tenha feito pelo menos uma vez; além de que voltar a indeferir implicaria abrir um conflito inútil com o Tribunal, destinado ao fracasso.
O que justifica, então, esta ampliação dos poderes do Tribunal, descritos como causa de uma "redução a zero do poder de discricionariedade da Administração" pelo Prof. Mário Aroso de Almeida, face ao número 2 do artigo 71º?
Há, parece-me, razões de economia processual, que pretendem resolver o conflito entre o particular e a Administração numa só instância, sem necessidade de perpetuação do conflito. Desta forma, cabe ao Tribunal estabelecer parâmetros de actuação da Administração Pública, que exercerá os seus poderes de discricionariedade dentro dos limites impostos pelo Tribunal.
Por outro lado, todavia, esta explicitação das vinculações a observar por parte da Administração Pública podem abrir caminho à outra face da moeda do já maçador "trauma de infância". É que facilmente o juiz cai numa violação da separação de poderes, querendo ser ele próprio a decidir a questão. Bastará para isso que estabeleça limites de actuação tão curtos que a Administração Pública fique "encurralada" numa forma de actuação possível - aquela escolhida pelo juiz -, situação que não me parece de todo favorável à tal separação dos poderes. Especialmente tendo em conta a possibilidade de o juiz em paralelo impor uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do 66º/3.
Miguel Baptista - 140111505
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