Chegou o Dr. Anacleto da sua viagem, já estafado e ainda com jet-lag, quando lê no jornal que será inaugurado
um aterro sanitário, pelo Presidente da Câmara Municipal de Póvoa do Manhoso,
junto de uma quinta de que é proprietário. Só ler a notícia foi suficiente para
sentir o ar empestado de mau cheiro.
Indignado, sabe que não deixará este acto passar impune, pretendendo
pois agir no sentido de anulação do acto, impondo ainda a reparação de danos
patrimoniais que entretanto sofreu.
Cabe-nos então analisar este caso seguindo três perguntas.
Primeiro, sobre a legitimidade do Dr. Anacleto; segundo, sobre o prazo de
impugnação; terceiro, sobre a alegada aceitação do acto.
Ora, primeira questão é então a de saber da legitimidade do
Dr. Anacleto. Esta legitimidade, como adiante veremos, é decorrência da
titularidade de direitos, da qualidade de sujeito processual e é aferida em
função do particular, que tem, ou deve ter, um interesse directo.
Estabelece o art.9º, n.º1, do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (doravante CPTA), que “o
autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material
controvertida”. Quererá isto dizer que o critério determinante do acesso ao
juiz é ter direitos e deveres no âmbito da relação jurídica.
Parece que, por estar em causa um aterro perto da quinta do
Dr. Anacleto, que este terá um interesse directo na anulação do acto
administrativo, sendo por isso parte legítima.
Não obstante, é de tomar em consideração que o Presidente da
Câmara sustentou em informação prestada ao jornal que não há legitimidade, uma
vez que o aterro se encontra a mais de um quilómetro de distância da sua
propriedade.
Ora, sucede que, ainda assim, o Dr. Anacleto poderia ser parte
legítima, pois, para além de poder ser autor particular, pode recorrer à acção
popular. É que, ao lado de um contencioso subjectivo, atribuído a titulares, também
há uma defesa da legalidade e do interesse público. Tal defesa, e legitimidade
para a prosseguir, encontra-se regulada no art.9º, n.º2 segundo o qual “independentemente de ter interesse pessoal
na demanda, qualquer pessoa (…) [tem] legitimidade para propor e intervir, nos
termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à
defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública,
o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida (…)”.
Parece que, ainda que o aterro se situasse a mais de um quilómetro de
distância, e por isso, eventualmente, não viesse a afectar directamente o Dr.
Anacleto, este podia ainda assim, pelas razões expostas, propor a anulação do
acto enquanto autor popular.
Vista a legitimidade em termos gerais, é agora necessário
olhar ao caso em concreto, conforme o pedido do Dr. Anacleto. É aqui relevante
o art.50º, segundo o qual “a impugnação
de um acto administrativo tem por objecto a anulação ou a declaração de
nulidade ou inexistência desse acto”. O artigo seguinte acrescenta que “(…) são impugnáveis os actos administrativos
com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja susceptível de
lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”. Parece ser
precisamente este o caso do acto em causa, uma vez que vem lesar o direito a um
ambiente são dos proprietários de terrenos contíguos ao aterro.
Visto que se pretende a impugnação do acto administrativo, voltamos
a analisar a legitimidade do Dr. Anacleto, agora já nos termos do art.55º.
Mesmo perante esta norma, será parte legítima, tanto pela al. a) como pela al.
f) do n.º1 do referido artigo.
Tudo visto, sabemos que o Dr. Anacleto terá legitimidade para
impugnar ao acto administrativo do Presidente da Câmara.
Relativamente à acção propriamente dita, estabelece o art.
46º, n.º 1 e n.º 2, al. a) que a anulação de um acto administrativo ou
declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica, seguem a forma da acção
administrativa especial.
Uma vez vista a possibilidade de anulação, não podemos
esquecer o facto de Anacleto pretender também o direito à reparação de danos
patrimoniais entretanto sofridos. Neste sentido é de tomar em consideração o
art.4º, n.º1, al. f), conjugada com a) ou e), que vem permitir o cumular de
pedidos de anulação do acto administração com o pedido de condenação na
reparação dos danos causados pela Administração, isto é, na reparação dos
referidos danos patrimoniais que sofreu.
Aliás,
tal possibilidade é também frisada no art.47º, n.º1, segundo o qual “com qualquer dos pedidos principais
enunciados no n.º2 do artigo anterior [no que agora importa, com a anulação
de um acto administrativo] podem ser
cumulados outros que com aqueles apresentem uma relação material de conexão (…)
e, designadamente, o pedido de condenação da Administração à reparação dos
danos resultantes da actuação ou omissão administrativa ilegal”.
Passando agora à questão seguinte. Nas mesmas declarações prestadas
ao jornal, o Presidente da Câmara referiu que o Dr. Anacleto já tinha
ultrapassado o prazo de impugnação dos actos administrativos.
Em matéria de prazos é preciso olhar para o art.58º, n.º2, al.
b), segundo o qual a impugnação de actos anuláveis tem lugar no prazo de três
meses. Neste caso, não nos são apresentados dados suficientes para aferir se a
acção foi proposta em três meses. Ainda assim, é de tomar em consideração a
possibilidade de alargamento de prazo num ano. Estabelece o art.58º, n.º4, al.
b), que a impugnação pode ser admitida, até um ano além do prazo de três meses,
caso se demonstre que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição
não era exigível a um cidadão normalmente diligente, neste caso, por o atraso dever
ser considerado desculpável devido às dificuldades que, no caso concreto, se
colocavam quanto à identificação do acto impugnável. Não podemos esquecer que o
Dr. Anacleto está acabado de chegar de uma viagem prolongada, não lhe podendo
ser exigível que, durante o período que esteve no estrangeiro, tenha tomado
conhecimento deste acto por parte do Presidente da Câmara.
Na questão do prazo, e ainda relevante uma outra
possibilidade, que, ainda que não seja directamente levantada no caso, pode ser
relevante. Em matéria de gestão de resíduos temos de tomar em consideração o Decreto-Lei
n.º 239/97 de 9 de Setembro. Estabelece este diploma, nas al. c) do n.º2 e al. a)
do n.º3 do art.9º, que, no que agora releva, os projetos de execução de aterros
dependem de autorização pelo Presidente do Instituto de Resíduos e pelo Director
Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais. Ora, quererá isto dizer que,
faltando esta autorização, o acto do Presidente da Câmara seria nulo, por falta
de competência. Se assim fosse, então, pelo art.58º, n.º1, o acto seria
impugnável a todo o tempo, uma vez que “a
impugnação de actos nulos ou inexistentes não está sujeita a prazo”.
Finalmente, surge-nos a questão de saber se, pelo facto do Dr.
Anacleto, depois de ter tido conhecimento da emissão do acto administrativo,
ter adquirido outra propriedade contígua ao terreno, constitui uma aceitação do
acto administrativo.
Considera ao art.56º, n.º1, que “não pode impugnar um acto administrativo quem o tenha aceitado,
expressa ou tacitamente, depois de praticado”. Acrescenta o número seguinte
que “a aceitação tácita deriva da
prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar”.
De facto, pode parecer que, ao adquirir um terreno contíguo à localização do
aterro, significa que o Dr. Anacleto não está realmente incomodado com este. No
entanto, a verdade é que comprar um terreno contíguo ao aterro não é facto
incompatível com a vontade de impugnar.
Aliás, até podemos pôr em hipótese que só terá comprado tal
terreno por confiar que a sua acção seria bem sucedida, e não teria de se preocupar
com a existência do aterro, uma vez que o acto que o determinou seria anulado. Aliás,
quem sabe, o Dr. Anacleto pode simplesmente ter aproveitado uma oportunidade de
negócio, por os preços dos terrenos contíguos ao aterro terem baixado. Enfim,
muito poderíamos indagar sobre as intenções do Dr. Anacleto, mas não parece que
a mera compra do terreno, ainda que contígua ao aterro, baste para se
considerar aceitação tácita.
Tudo visto e analisado, parece que o Dr. Anacleto poderia, porque
parte legítima e em tempo, propor uma acção particular ou popular, impugnando o
acto administrativo, pedindo a sua anulação, ao mesmo tempo que cumulava o
pedido de indemnização.
Inês Metello - 140111090
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