O presente comentário tem como objectivo explorar o âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos em matéria de ambiente.
Antes os tribunais administrativos não eram vistos como verdadeiros tribunais, mas sim como órgãos dependentes da Administração, sendo os tribunais judiciais o único garante dos direitos dos particulares.
De acordo com esta lógica, o artigo 45.º da Lei de Bases do Ambiente na sua redacção anterior remetia a apreciação de todos os litígios ambientais para os Tribunais Judiciais.
Com a revisão constitucional de 1989 operou-se a plena jurisdicionalização dos tribunais administrativos.
Desta maneira, o artigo 212 n.º 3 da CRP passou a ser preferido pela jurisprudência que deixou de aplicar o artigo 45.º da Lei de Bases do Ambiente na sua redacção anterior, passando a considerar competentes os tribunais administrativos quando estavam em causa litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.
Segundo o art. 1.º do ETAF, “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. É de notar o carácter extensivo do âmbito de jurisdição administrativa proposto com carácter geral por este preceito.
No que respeita ao Direito do Ambiente, a fronteira entre o público e o privado é ténue e, numa situação de conflitualidade negativa de jurisdição competente, podemos deixar desprotegido algo que ao Direito visa proteger.
Analisando este art. 1.º do ETAF, a relação jurídica administrativa pode ser apontada como critério delimitador da competência dos tribunais administrativos. Contudo, não é rara a alocação de litígios de natureza administrativa para tribunais situados fora da jurisdição administrativa (v.g. tribunal de contas ou tribunais comuns), bem como está também prevista a possibilidade de matérias não estritamente administrativas serem colocadas sob a jurisdição dos tribunais administrativos.
O Direito ao Ambiente é transversal a todo o ordenamento jurídico, tanto no âmbito público como privado. Pode tornar-se, portanto, complicado aferir em que consiste a relação jurídica administrativa nestas matérias.
Sumaria e globalmente, podemos dizer que estamos perante uma relação jurídico-administrativa quando a relação é estabelecida entre dois órgãos administrativos e/ou pessoas colectivas públicas ou quando a relação é estabelecida entre dois sujeitos e que pelo menos um deles, seja público ou privado, actua no exercício de um poder de autoridade ou no cumprimento de deveres administrativos de autoridade pública impostos por motivos de interesse público.
Na interpretação do que seja uma relação jurídico-administrativa, podemos adoptar um critério formal de relação jurídica administrativa (como defendido por Mário Aroso de Almeida), um critério material de relação jurídica administrativa (advogado por Carla Amado Gomes) ou ainda um critério funcional (proposto por Vasco Pereira da Silva), segundo o qual será considerada uma relação jurídica administrativa a que implicar o exercício próprio da função administrativa em sentido material.
Como já foi referido, o núcleo fundamental da jurisdição administrativa já não reside na tutela reactiva dos particulares perante actos de autoridade do poder público, mas antes na garantia dos princípios estruturantes da função administrativa (v.g. preservação do ambiente).
Assim, um novo conceito entra na reflexão: “as relações jurídicas administrativas que interessam à jurisdição administrativa são aferidas pelo critério do fim de interesse público, independentemente da natureza do sujeito ou do regime jurídico que o convocam” (Jorge Cortês).
Em jeito de concretização da cláusula geral enunciada no art. 1.º, o art. 4.º do ETAF estabelece uma enumeração não taxativa, ora positiva (n.º 1) ora negativa (n.ºs 2 e 3), das matérias que caem ou não no âmbito de jurisdição administrativa.
Abordaremos aqui as previsões normativas que mais interessam à temática do ambiente.
O art. 4.º/1/a do ETAF, ao tutelar os direitos fundamentais, coloca o acento tónico da justiça administrativa no plano subjectivo; sendo o Direito ao Ambiente um direito fundamental, poderíamos cair no erro de concluir que o problema ambiental estaria resolvido. Mas este preceito não pode ser lido de forma isolada em relação à cláusula geral do art. 1.º. Assim, só estão aqui ínsitos os direitos que se projectem numa dada relação ou litígio administrativo. Ficam de fora, por exemplo, os litígios privados. Atente-se ainda para o facto de este preceito ainda englobar a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares fundados em normas de direito administrativo, mesmo que perante outros particulares (art. 37.º/3 CPTA). Assim, na alínea a) cabe a imputação de responsabilidade ao lesante que usa uma licença de forma abusiva e também à Administração, na medida em que não colocou em funcionamento a sua obrigação de “vigilância”. Pode suceder que o lesante esteja de boa fé ao utilizar licença inválida pelo que não poderá ser responsabilizado pelos tribunais administrativos.
Indirectamente, ao prever que o âmbito de jurisdição abrange as situações de responsabilidade civil extracontratual, as alíneas g), h) e i) do n.º 1 do art. 4.º trazem às instâncias administrativas novas acções enquadradas na temática ambiental.
A alínea l) estatui que está no âmbito de competência dos tribunais administrativos, “promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de (…) ambiente (…), quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional”. Basta que a agressão ao ambiente tenha ocorrido em consequência da actuação de uma entidade pública para que o litígio seja submetido aos tribunais administrativos.
O problema levanta-se com a conduta danosa por parte de particular que ora viola as normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ora exerce a sua agressão em consequência de um acto administrativo ilegal, que por ser anulável ainda não foi objecto de qualquer decisão.
Com efeito, parece razoável atribuir competência aos tribunais administrativos nestes casos, bem como nos casos em que o agressor privado tem a cobertura de um acto administrativo legal, concretamente uma autorização administrativa, mas em que a sua actuação se revela lesiva para a esfera jurídica de outro particular, no seu direito fundamental ao ambiente.
Nas palavras de Mário Aroso de Almeida: “não se afigura que a autorização possa ser oposta ao lesado, para o efeito de o constituir no ónus de a impugnar, sob pena de ficar impedido de agir, perante os tribunais judiciais, directamente contra o particular responsável pela actividade em causa”.
O mesmo não se poderá dizer numa situação em que os avanços tecnológicos já permitem a realização da mesma actividade de uma forma muito mais sustentável e ecológica. Quando se pode exigir mais eficiência ambiental ao agente económico mas não se pode dizer que ele age sem autorização, o particular lesado terá que recorrer aos tribunais comuns para instaurar qualquer acção contra o agente económico.
Carla Amado Gomes critica esta objectivação, argumentando que as entidades privadas colaboradoras da administração na satisfação do interesse público ficam de fora do âmbito da jurisdição administrativa. Mas por um lado o conceito de entidade pública pode ser interpretado extensivamente; por outro, esta enumeração do art. 4.º não é taxativa. De qualquer modo, essas actuações seriam sempre protegidas pela alínea a) já abordada. Além disso, o art. 37.º/2/c antevê a possibilidade de condenação à prática de um acto administrativo, positivo ou negativo, a um particular. O que está aqui em questão é, mais uma vez, o interesse público, sugerimos que de uma perspectiva funcional.
Situação não prevista é a das eco etiquetas (regulamento C.E n.º 1980/2000) - a atribuição das etiquetas é uma operação de certificação que não consubstancia nem um acto administrativo per se nem um contrato. Além disso, tais etiquetas têm um impacto considerável no consumidor, no sentido de depositarem a garantia e convicção de qualidade ambiental do produto ou serviço que escolhem.
Faz sentido fazer depender, à partida, de qual a entidade que atribui tais etiquetas? No caso do rótulo ecológico atribuído pela Direcção Geral da Indústria, podemos englobá-lo na alínea l) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF. Mas mesmo que fosse uma entidade ou agência privada, não seria um caso de interesse público a considerar pelo Direito Administrativo?
Para Mario Aroso de Almeida, este preceito legal basta-se com o facto de a agressão ser levada a cabo por uma qualquer entidade administrativa. Esta posição deixa de fora as lesões ambientais perpetradas por entidades privadas colaboradoras com a administração pública em missões de satisfação do interesse público. Esta redução é, porém, aparente. Na verdade, não podemos esquecer o que nos diz a alínea a) do mesmo artigo e o art. 37.º/2 do CPTA - estas circunstâncias ainda estão no âmbito da jurisdição administrativa, ainda que não através da alínea l).
Assim, se a entidade que pratica o acto é uma entidade administrativa temos a alínea l) do art. 4.º a atribuir competência aos tribunais administrativos. Se não estamos perante um acto praticado pela administração então: ou o acto viola direitos fundamentais ou decorre de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo e, neste caso, temos a alínea a) do artigo em referência para o incorporar na jurisdição administrativa, corroborada pelo art. 37.º/3 CPTA. Nos demais casos, temos sempre os tribunais comuns.
A dupla tutela a que aqui aludimos, a propósito da alínea a) e l) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF e art. 37.º/3 do CPTA, é suficiente para uma efectiva tutela ambiental no âmbito do contencioso administrativo.
Não se diga que é indiferente se a causa é apreciada no âmbito do tribunal administrativo ou do tribunal comum. Atente-se, por exemplo, o art. 109.º do CPTA, que prevê uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, expediente processual que não está ao alcance dos tribunais comuns.
Concluindo, a reforma do Contencioso Administrativo veio alargar o âmbito de jurisdição administrativa, isto é, veio estender a protecção do Direito ao Ambiente enquanto Direito Fundamental e Constitucional às instâncias administrativas, que muitas vezes estão em melhor posição para aferir do sentido do interesse público em cada momento, em cada lugar.
A interpretação dos preceitos abordados, deve ser orientada pelo interesse público e deve conduzir a uma extensa e multi-dimensional protecção dos direitos fundamentais, principalmente daqueles que constituem a natureza humana mais pura, como a sua ligação e pertença à Natureza.
Não será, portanto, por lacunas legais que as actuações danosas para o meio ambiente, saúde pública e, consequentemente, interesse público, não serão devidamente identificadas e minoradas na sociedade.
A linha difícil de desenhar será sempre a que preenche estes conceitos indeterminados como ambiente ou interesse público.
Da protecção legal à protecção real vai um grande passo, um que o Direito não deve nunca esquecer.
Tomás Furtado Martins
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