- Andamos num beco sem saída? Para quando a unidade? -
Desde cedo que esta temática é das que mais preocupa a doutrina e a
jurisprudência por motivos evidentes, nem que seja pelo facto da
responsabilidade civil das entidades públicas constituir um dos pilares base do
Estado de Direito plasmado no art.22º. A responsabilidade civil pública não
é mais do que a obrigação jurídica que recai sobre qualquer pessoa colectiva
pública de indemnizar os prejuízos que tiver causado aos particulares no
desenrolar das suas funções. Foi considerada por muitos como tendo sido negligenciada na reforma do
contencioso chegando alguns a dizer que a reforma ficou por completar. Na
verdade apesar dessa matéria constar do catálogo das propostas legislativas que
integravam a reforma, a mudança acabou por não se verificar em virtude da baixa
ocorrida no decurso do procedimento (a AR deixou de lado o diploma regulador da
responsabilidade civil da AP). Para além disso chamo à colação o facto do
aparecimento do novo regime jurídico da responsabilidade extracontratual do estado
e das demais entidades públicas só ter sido em 2007 o que fez como que inúmeras
questões não fossem resolvidas. Uma das suas principais críticas é o facto do seu
regime jurídico que não ser totalmente coincidente com a “letra e o espírito”
da reforma. A história começa com o famoso acórdão Blanco onde estava em causa
o atropelamento de uma menina de 5 anos por um vagão de uma empresa pública de
Bordéus. Este traumático aparecimento do Direito Administrativo marcado por uma
infância difícil ainda hoje influencia a forma de actuação deste ramo do
direito. Porque na verdade, é notório que há uma primazia da Administração em
deterimento da protecção dos particulares. Até aos dias de hoje, verificamos
uma sucessiva repetição da história em que os tribunais judiciais como os
tribunais administrativos se consideravam incompetentes para decidir e
mostravam dúvidas quanto ao direito aplicável. O professor Vasco Pereira da
Silva, em tom irónico, afirma que o Contencioso Administrativo é sobre muitos
aspectos uma “história sem moral”.
Como ensina o Professor Freitas do Amaral os danos causados no desempenho
de actividades de gestão privada a Administração responde segundo o Direito
Civil perante os tribunais judiciais, e pelos danos causados no exercício de
gestão pública responde segundo o Direito Administrativo perante os tribunais
administrativos.
Assim, o direito da responsabilidade administrativa, com a respectiva dualidade
de regimes jurídicos e de tribunais competentes caracterizava-se pela
fragmentariedade originando uma verdadeira manta de retalhos. Seguidamente,
vamos expor os argumentos do Professor Vasco Pereira da Silva em relação a este
sistema ilógico pois não tem sentido assentar na distinção entre gestão pública
e privada.
1. Tinha como pressuposto uma ideia autoritária da Administração que, ou exercia poderes de autoridade, ou era remetida para o direito Privado. O que correspondia a uma concepção do D. Administrativo como um conjunto de normas “excepcionais” do Direito Civil, que se fazia acompanhar de uma visão actocêntrica das formas de actuação administrativa;
2. Não é possível distinguir as actuações informais e técnicas, assim como as operações materiais da AP, com base na distinção da gestão pública e da gestão privada. Em vez disso, todas as actuações administrativas tendem a surgir unificadas em razão da ideia de função administrativa e não da regra do exercício do poder. Aquilo que é comum a todas as actuações administrativas e que justifica um tratamento jurisdicional unitário, é a dimensão da satisfação de necessidades colectivas através de formas públicas e privadas.
Primeiramente, comecemos por referir que compete à jurisdição
administrativa o julgamento das questões em que haja lugar a responsabilidade
civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo o
resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa
(artº4/1 ETAF). Como ensina o Professor Vasco Pereira da Siva é descabido de sentido
interpretar literalmente uma norma que concretiza uma cláusula geral. Neste
seguimento, também não é correcto apelar a um elemento histórico, perante um
procedimento legislativo tão atribulado. As razões de ordem material e do espírito
do sistema apontam no sentido da inclusão da responsabilidade civil da função
política no Contencioso Administrativo, tanto pela similitude de
características materiais das funções política e legislativa, como pela lógica
do sistema apontar para a unificação do regime da responsabilidade civil
pública, mediante uma cláusula geral, pelo que a referencia às funções
legislativa e jurisdicional deve ser considerada como meramente
exemplificativa.
A verdade, é que mesmo abandonada a dualidade de jurisdições, não desapareceu
a dualidade de regimes jurídicos, uma vez que a ausência de um outro diploma
regulador da responsabilidade civil pública faz com que continue a ser
necessário, para a determinação do regime jurídico aplicável, saber se se está
perante uma actuação de gestão pública ou de gestão privada.
A versão anterior do art.4º/1 fazia referencia à responsabilidade civil
extracontratual das pessoas colectivas de direito público. E logo houve quem
quisesse ver na letra da lei, habilitação bastante para fazer uma leitura
restritiva da unidade jurisdicional e para reintroduzir a relevância da
distinção gestão pública/privada. O Professor Vasco Pereira da Silva considera que esta solução parece
contrariar o regime estabelecido pelo Código por algumas razões principais:
- Se o critério geral de
determinação da jurisdição competente é o da natureza da relação (arts.
212º/3 CRP e 1º/1 ETAF), sendo as
situações identificadas no nº4 meramente exemplificativas, então como é que uma
só relação jurídica pode ser simultaneamente qualificada como administrativa e
não administrativa, para efeitos contenciosos, consoante a posição ocupada pela
entidade pública seja a de ré ou de autora? O suposto argumento da letra da lei
não faz qualquer sentido, uma vez que é equivoco, inclusivé da perspectiva da
analise literal, pois a expressão “haja lugar” é pouco rigorosa, como também a
globalidade da formula empregue se presta a varias interpretações. Considerando que, o legislador instaurou um sistema de unidade
jurisdicional em matéria de responsabilidade civil administrativa, forçoso é de
concluir pela aplicação desse regime a todo o universo da responsabilidade
civil no âmbito da função administrativa.
Finalmente é essencial falar de um argumento histórico, baseado apenas numa
variação “equivoca” da letra do preceito, pretendendo atribuir-lhe um sentido
que não encontra qualquer fundamento nos trabalhos preparatórios aliás até os
contradiz, pois o que se conhece desses documentos é a intenção expressa de um
regime de unidade jurisdicional para o contencioso da responsabilidade civil
administrativa, é um absurdo ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso
(art.4º/3 a) ETAF). Só com a lei 67/2007 há uma viragem em que surge finalmente
o novo regime da responsabilidade civil pública.
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