O artigo 51º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (adiante CPTA) estabelece o critério da impugnabilidade de actos administrativos. Assim, são
impugnáveis os actos com eficácia externa, isto é, actos que produzam efeitos
e, ainda, os actos susceptíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.
Na nossa ordem jurídica, o legislador no
art. 9º CPTA consagrou a ideia da acção jurídica subjectiva como realidade
essencial, mas admite que haja, a título complementar, acção popular e acção
pública. Este artigo tem, assim, de ser lido nesse contexto.
Na acção jurídica subjectiva o particular vai
alegar um direito sendo o critério de impugnabilidade o da susceptibilidade de
lesão de interesses legalmente protegidos. Quando estamos numa acção pública ou
popular já não está em casa nenhum direito. Na lógica da teoria do processo a
ligação das duas coisas introduz esta dimensão.
Na perspectiva do professor Vasco Pereira da
Silva é criticável que o legislador não tenha estabelecido os dois critérios de
uma forma mais clara. Isto significa que o critério mais amplo é o da lesão e
não o da eficácia directa. Em primeiro lugar porque aquele critério corresponde
à realidade essencial da determinação da impugnabilidade (268º/4 CRP), por
outro porque a eficácia directa só releva naquelas duas modalidades de acção.
O professor Sérvulo Correia entende que isto
prova que a impugnabilidade é apenas uma condição de legitimidade e não um
pressuposto autónomo.
O professor Vasco Pereira da Silva, por sua
vez, vem dizer que o critério da legitimidade diz respeito às qualidades das
pessoas, ao passo que o pressuposto da impugnabilidade diz respeito ao acto,
pelo que não há razão para os confundir. De qualquer forma, é verdade que faz
sentido ligar a impugnabilidade ao pressuposto da legitimidade. Há, assim,
estes dois pressupostos autónomos que o legislador consagra e que introduzem
esta realidade ao nível do Contencioso Administrativo.
Nestes termos em que agora o acto impugnável
é delimitado por critérios amplos que puseram em causa aqueles critérios
tradicionais estamos perante uma realidade em que mais importante que uma
noção substantiva de acto impugnável é uma noção processual porque qualquer
acto é susceptível de produzir efeitos directos e de lesar direitos dos
particulares.
O que é criticável no artigo 51º/1 do CPTA é
o modo como está formulado. Parece que o critério mais amplo para o legislador
é o da eficácia externa e, na verdade, não é assim. Depois, porque o critério da
lesão é o critério mais importante, o que marca a esmagadora maioria das acções
no quadro do Contencioso Administrativo. Isto significa que da perspectiva do
legislador a questão da impugnabilidade assenta numa lógica processual e
portanto o que está em causa é um conceito situacional: o que releva é o acto
encontrar-se numa situação que é susceptível de lesar direitos dos particulares
ou que produza efeitos no caso concreto.
O legislador logo a abrir o 51º/1 admite que
em qualquer momento do procedimento administrativo, na medida que preencha a
previsão da norma, o acto é susceptível de impugnação. O particular pode
escolher o momento em que pretende atacar a actuação da Administração. É uma
escolha do particular e essa escolha depende da opção processual que o
particular faça. Porém, para que houvesse efectivamente poder de escolha era preciso
que o legislador viesse dizer que o facto de não ter impugnado um acto lesivo
não impedia a impugnação de um acto posterior.
Uma leitura errada do 51º/1 CPTA podia levar a dizer que o particular só podia
impugnar o acto que o lesava logo no início. O legislador diz que o particular
pode escolher o momento em que vai atacar a administração. Por isso, vem dizer
no nº 3 do artigo 51º CPTA que a circunstância de não ter impugnado qualquer
acto procedimental não impede o interessado de impugnar o acto final com
fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento.
A definitividade material também nunca aparece
aqui definida como critério. A norma do art. 53º CPTA vem desvalorizar mesmo a
ideia da definitividade material. Aquilo que era a eficácia prática da
definitividade material era dizer que o acto que foi produzido não foi
impugnado. Estes critérios têm de corresponder a um acto que seja exactamente
igual. A ideia da definitividade material é posta em causa porque não releva
saber o momento em que houve definição do direito. Mesmo quando há uma
definição do direito essa definição não vale para justificar a inimpugnabilidade
daquele acto. As regras do art. 53º CPTA vêm, assim, limitar as hipóteses de
não impugnação decorrentes do facto de ter havido um acto anterior. O que
releva é, portanto, a lesão.
Por último, em relação ao acto definitivo em
termos verticais, se olharmos hoje para as regras dos artigos 51º e seguintes do CPTA, em
nenhuma delas se faz qualquer referência ao facto de o acto ter de ser
praticado pelo órgão superior da hierarquia. Isto porque o legislador quis
afastar este modelo piramidal hierárquico que vinha dos tempos da infância
difícil do Contencioso Administrativo. Hoje não há no Código nenhum pressuposto
processual no seguimento disso. No Código de Processo não se fala nesse
pressuposto e, portanto, ele foi afastado. Isto é pacífico e aceite por toda a
doutrina. O problema, no entanto, coloca-se quanto ao âmbito desta realidade
que decorre destas normas.
O professor Vasco Pereira da Silva defende
que este Código não permite sequer que exista em caso algum um recurso
hierárquico necessário. Não só pelo disposto nestas normas mas também pelas regras que
decorrem da Constituição. Professores como Mário Aroso e Freitas do Amaral entendem
que este Código revogou a regra geral do Código de Procedimento mas não afastou
essa exigência quando essa regra constar de regras especiais.
Segundo o professor Vasco Pereira da Silva,
esta questão não surgiu só em 2004, já vem desde 1989 porque até 1989 o
legislador constituinte estabelecia um direito fundamental de acesso à justiça
limitado aos actos definitivos e executórios e esse limite desapareceu nessa
altura. Se assim é não pode ser o legislador ordinário a criar um limite que
põe em causa o conteúdo do direito. Aqui há vários argumentos de ordem
constitucional já defendidos em 1989 que devem ser repetidos hoje.
Argumento
do direito de acesso:
Em primeiro lugar, a exigência do recurso
hierárquico necessário violaria o princípio do acesso à justiça. De facto, não
faz sentido que um direito que é garantido sem limites seja limitado
legislativamente pelo uso ou não uso de uma garantia administrativa. Não faz
sentido que essa garantia seja posta em causa criando-se um limite deste
género.
Argumento da separação entre administração e justiça:
Acresce que não faz sentido condicionar a
ida a Tribunal pelo facto de não ter recorrido primeiro à Administração. A
consequência de se dizer que o recurso hierárquico é necessário é a
impossibilidade de o particular que não recorre hierarquicamente ao nível
administrativo não poder aceder ao tribunal.
Argumento
do princípio da desconcentração:
Se a Constituição consagra um princípio de
desconcentração e divide os poderes entre vários órgãos, não faz sentido que
haja uma concentração que obriga a obter uma decisão do órgão de topo. Veja-se
que em Itália isto foi suficiente para se dizer que a exigência do recurso
hierárquico necessário é inconstitucional.
Argumento
da limitação prática do exercício do direito em termos excessivos:
O direito pode ser limitado no seu conteúdo
mas também podia ser limitado no seu exercício de forma desproporcionada. Dizer
que o particular tinha previamente de usar o recurso hierárquico significava
reduzir o seu período de impugnação de 2 para 1 mês. Uma redução a metade de um
prazo curto é algo que limita o exercício do direito em termos altamente
desproporcionais.
Por tudo isto poderíamos enfrentar um problema
de inconstitucionalidade de uma exigência desse recurso.
Com todo o respeito, aquilo que os juízes do
Tribunal Constitucional alegavam não tinha a ver com o que estava em jogo. O
argumento dos diferentes acórdãos a partir de 1989 era o de que essa exigência
de recurso hierárquico necessário não era inconstitucional porque o particular
não é prejudicado por usar o recurso hierárquico por isso o particular não tem
nada a perder em usar recorrer hierarquicamente. Ora, isto é falacioso porque a
inconstitucionalidade não está no caso em que o particular usou o mecanismo. A
inconstitucionalidade está no facto de o particular se não usar o recurso
administrativo não poder recorrer em sede contenciosa. Aquela jurisprudência não estava, assim, a
responder ao problema.
Para além destes argumentos serem válidos
hoje, é ainda indiscutível que o recurso hierárquico necessário não apenas não
é devido em termos constitucionais como não é devido em termos legislativos.
Este Código de Processo não consagra esse pressuposto processual, por isso não
é qualquer outra lei avulsa que pode estabelecer novos pressupostos, a menos
que revogue a norma de processo. O facto de não estar aqui nem em nenhuma lei
processual significa que não é pressuposto.
Na perspectiva do professor Vasco Pereira da
Silva a norma de processo não revogou normas de procedimento. Fez com que as
normas de procedimento caducassem, deixassem de ter aplicabilidade. Foi por ter
estabelecido um novo regime para o processo que as normas procedimentais que
existiam deixaram de ser aplicadas. A ideia de caducidade é certamente a mais
adequada para caracterizar o que aconteceu com a reforma. Na perspectiva do
professor Vasco Pereira da Silva a reforma afastou todas as exigências de
recurso hierárquico necessário através de um fenómeno de caducidade. Deixou de
fazer sentido exigir o cumprimento da regra procedimental porque deixou de ser
necessário. O recurso hierárquico necessário passou a ser desnecessário.
Rita Pereira de Abreu
140111082
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