terça-feira, 18 de novembro de 2014
Escuteiros
O artigo 9º/2 do CPTA tem a seguinte redacção:
"Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais."
A propósito da legitimidade enquanto pressuposto processual no âmbito de uma relação processual administrativa ou fiscal (vide artigo 1º ETAF), este artigo 9º/2 do CPTA remete para os requisitos da acção popular, intentada à imagem de um "bom escuteiro", como refere o Prof. VPS várias vezes nas aulas.
Entende-se, aliás, que a legitimidade para se ser autor de uma acção popular se calcula através de um raciocínio negativo, nomeadamente não ter interesse directo, nos termos do artigo 9º/1.
Dito isto, parece o legislador ter sido claro quando quis limitar as acções populares à "defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a sáude pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais."
O regime do CPTA, já o sabemos, envolve uma remissão genérica e supletiva para o Código de Processo Civil, nos termos do artigo 1º CPTA.
Quanto à legitimidade plural, uma dúvida em concreto se coloca.
Vejamos:
O artigo 31º do CPC prevê as acções para tutela de interesses difusos (e.g. Lei 83/95, 31 de Agosto, ou Lei da Acção Popular).
À partida, nenhum problema se coloca em termos de compaginação entre o regime processual civil e o administrativo.
Mas indo mais longe, nada impede que haja legitimidade plural fora dos casos previstos para a acção popular. Nada impedirá uma situação de litisconsórcio ou de coligação, nos termos dos artigos 32º e seguintes do CPC.
Ora, muito concretamente em relação às situações de coligação previstas no artigo 36º, não poderá haver por aqui uma "porta de entrada" a uma acção do género da acção popular, pelo caminho da coligação? Fugindo-se à limitação quanto ao objecto imposta pelo artigo 9º/2? Aproveitando, porventura, a larga abstracção dos conceitos de "prejudicialidade" e de "dependência" do 36º, parte final?
Pelo artigo 9º/2 e pelos artigos i) 68º/1, al. c) (caso tenha havido omissão de um dever de decidir sobre a aprovação de obras, por exemplo); ou ii) 73º/3 (quanto a um regulamento que permite a construção de fábricas perto do edifício, que o possam danificar gravemente); ou iii) 77º/1 (omissão de norma que regule a possibilidade de autorizar obras no edifício, por exemplo), terão legitimidade para ser autores na respectiva acção as pessoas que não tenham um interesse directo na demanda.
Quis o legislador com isto acautelar a posição dos tais valores e bens constitucionalmente protegidos. Por vezes, até de forma excessiva; vide artigo 73º/2.
Acontece que por força da figura da coligação, nomeadamente através da invocação de uma prejudicialidade ou dependência entre várias acções, poderão vários particulares usar essa figura para fugir à limitação imposta pelo artigo 9º/2 e pelo 31º CPC.
Poderá, em rigor, a coligação servir para que o conceito de "interesse directo na demanda" do artigo 9º/1 seja reduzido a um interesse indirecto e reflexo, à imagem do previsto no artigo 9º/2.
Dessa forma, perderia todo o sentido distinguir a legitimidade para efeitos de acção declarativa "normal" e acção popular, para efeitos de legitimidade. Perderia todo o sentido falar-se em interesse directo ou não. Em última análise, a coligação - quanto às matérias em que é admissível - transformaria por via indirecta a acção popular num "escuteiro manhoso", daqueles que aparecem nas notícias pelas piores razões, em detrimento da tal figura - algo ingénua, se calhar - do "bom escuteiro".
Por outro lado, poderia ganhar algum sentido a referência desfasada à acção popular no já referido artigo 73º/2, pois estaria o legislador ao menos a assumir uma posição clara de beneficiar "qualquer das entidades referidas no nº2 do artigo 9º".
Dito isto, terá o legislador querido deixar entrar pela janela aquilo que proibiu pela porta?
Miguel Baptista - 140111505
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