Com a seguinte exposição, proponho, no seguimento das aulas e por sugestão do Professor, avaliar o regime do art.72º e seguintes do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (ora em diante, apenas CPTA) sobre os pressupostos da impugnação de normas e declaração de ilegalidade não só quanto ao regime em vigor, mas em relação aquele que se pretende fazer aprovar (Projecto de Revisão do CPTA e ETAF, 2014).
Como já analisamos, o direito de impugnação de normas administrativas com eficácia externa lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares encontra, antes de tudo, a sua protecção legal a nível Constitucional no art.268º, nº5 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Esta protecção conferida aos particulares surgiu com a reforma de 1997 e desencadeou uma alteração ao nível da legislação no Processo Administrativo.
Antes de mais, cumpre esclarecer, que os artigos 72º e seguintes se referem, a contrariu sensu, a tudo o que não forem actos administrativos caracterizados por uma relação bilateral entre o particular a a Administração (individuais e concretos). Portanto, cabem nesta previsão “todas disposições unilaterais que sejam só gerais, só abstratas, para além das que possuam ambas as características”.
Em linhas gerais, o regime proposto pelo legislador admite dois tipos de pedidos:
- Declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.
- Declaração de ilegalidade no caso concreto.
Quanto ao primeiro, tem legitimidade o Ministério Público em qualquer situação (sem restrições) e o actor popular e o particular quando se verifiquem três casos concretos em que a aplicação da norma tenha sido sido recusada por qualquer tribunal com fundamento na sua ilegalidade.
Quanto ao Ministério Público, o ónus de pedir a declaração de ilegalidade transforma-se num dever quando este tenha conhecimento de três casos concretos de “desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade”.
Quanto à declaração de ilegalidade no caso concreto, o legislador estabelece um regime alternativo ao dos três casos de desaplicação, quando se trate de uma norma imediatamente exequível. Nesta situação, pode o particular ou o actor popular pedir a declaração de ilegalidade, mas os efeitos só se produzem em relação ao caso concreto.
Por um lado, não se compreende a dicotomia Ministério Público, actor popular e particular. O MP passa a ser a figura central a quem se atribui a responsabilidade de impugnação, sem restrições enquanto que o particular e o actor popular ficam dependentes da existência de três casos concretos. Não se distingue aqui a posição do particular, que actua com um interesse próprio (pessoal e directo) na demanda e o actor popular, que não tem interesse próprio na demanda. Atribui-se ao actor popular a possibilidade de se constituir como assistente do MP quando essa posição deveria caber ao particular. Ora, o actor popular actua para defesa do interesse público e nesse medida deveria estar equiparado ao MP e não ao particular. Desta forma, não se nos afigura em que situações o actor popular poderá actuar nos termos do nº2 se ele não tem interesse pessoal na demanda.
Consideramos que a evolução legislativa, apesar de ter vindo resolver problemas “esquizofrénicos” que existiam no anterior regime veio diminuir os poderes concedidos ao particular e nessa medida o regime agora em vigor viola a Constituição.
Também em relação ao Direito Europeu se afasta do que a Jurisprudência do TJUE tem vindo a entender na medida em que, segundo este Tribunal, quando uma norma é considerada ilegal num caso, ela será ilegal para todos os outros casos a que se aplique e por esse motivo deve ser afastada da ordem jurídica.
Quanto ao Projecto de Revisão do CPTA, estabelece-se:
Artigo 73º
[...]
1 – A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa pode ser pedida por quem seja diretamente prejudicado pela vigência da norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente da prática de acto concreto de aplicação, pelo Ministério Público e pelas pessoas e entidades referidas no n.o 2 do artigo 9.o, assim como pelos presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas emitidas pelos respetivos órgãos.
2 – Quem seja diretamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em qualquer dos fundamentos de ilegalidade previstos no n.o 1 do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa pode obter a desaplicação da norma, pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso.
3 – Quando os efeitos de uma norma não se produzam imediatamente, mas só através de um acto administrativo de aplicação, o lesado, o Ministério Público ou qualquer das pessoas e entidades referidas no n.o 2 do artigo 9.o podem suscitar a questão da ilegalidade da norma aplicada no âmbito do processo dirigido contra o acto de aplicação a título incidental, pedindo a desaplicação da norma.
[...]
1 – A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente operativa pode ser pedida por quem seja diretamente prejudicado pela vigência da norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente da prática de acto concreto de aplicação, pelo Ministério Público e pelas pessoas e entidades referidas no n.o 2 do artigo 9.o, assim como pelos presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas emitidas pelos respetivos órgãos.
2 – Quem seja diretamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em qualquer dos fundamentos de ilegalidade previstos no n.o 1 do artigo 281º da Constituição da República Portuguesa pode obter a desaplicação da norma, pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso.
3 – Quando os efeitos de uma norma não se produzam imediatamente, mas só através de um acto administrativo de aplicação, o lesado, o Ministério Público ou qualquer das pessoas e entidades referidas no n.o 2 do artigo 9.o podem suscitar a questão da ilegalidade da norma aplicada no âmbito do processo dirigido contra o acto de aplicação a título incidental, pedindo a desaplicação da norma.
4 – O Ministério Público tem o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua ilegalidade, bem como de recorrer das decisões de primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral.
5 – Para o efeito do disposto no número anterior, a secretaria, após o respetivo trânsito em julgado, remete ao representante do Ministério Público junto do tribunal certidão das sentenças que tenham desaplicado, com fundamento em ilegalidade, quaisquer normas emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo ou que tenham declarado a respetiva ilegalidade com força obrigatória geral.
A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral pode ser requerida quer pelo Ministério Público, quer pelo actor popular, quer pelo particular que seja directamente prejudicado pela sua vigência (ou possa vir a sê-lo), sem necessidade de três casos concretos de desaplicação, quando se trate de norma exequível por si mesma. Encontramos aqui uma evolução quanto ao regime agora em vigor, que, como vimos, faz depender a actuação do particular e do actor popular de três casos concretos. O legislador fez questão de assumir expressamente esta mudança quando ressalva, “independentemente da prática de acto concreto de aplicação”.
Alarga-se ainda a legitimidade aos presidentes de órgãos colegiais, em relação a normas emitidas pelos respectivos órgãos.
Mantém-se uma situação de declaração de ilegalidade no caso concreto: continua a existir a possibilidade de desaplicação a titulo incidental, quando a lesão provier de um acto administrativo, de que a norma depende para se aplicar.
Quanto ao nº2, surge a questão de saber se o legislador quis alargar o âmbito de aplicação da norma constitucional do art.281º, nº1atribuindo legitimidade ao particular imediatamente interessado, mas com os efeitos circunscritos ao caso concreto.
Sendo assim, ultrapassa o âmbito do Direito Administrativo, aplicando-se a qualquer norma exequível por si mesma emanada pelo poder legislativo.
De outra forma não se compreende este preceito, uma vez que seria, nesse caso, menos abrangente do que o regime do nº1 (e criaria uma “esquizofrenia” incompreensível). Senão vejamos: o legislador permite ao particular interessado que impugne um regulamento (vide acima) pedindo a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando se trate de norma exequível por si mesma - nº1 do art.73º. De seguida, vem permitir a mesma impugnação mas apenas com efeitos circunscritos ao caso concreto - art.73º, nº2. Porquê desta restrição? Porque se refere apenas aos casos do nº1 do artigo 281º da CRP. Quais são eles?
“a) A inconstitucionalidade de quaisquer normas;
b) A ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado;
c) A ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma regional, com fundamento em violação do estatuto da região autónoma;
d) A ilegalidade de quaisquer normas constantes de diploma emanado dos órgãos de soberania com fundamento em violação dos direitos de uma região consagrados no seu estatuto.
”
O 281º, nº1 incumbe ao Tribunal Constitucional a apreciação geral e abstrata da Constitucionalidade e da legalidade, a pedido dos órgãos enumerados no nº2.
O nº2 deste artigo incumbe aos Tribunais Administrativos a apreciação individual e concreta da Constitucionalidade e da legalidade, a pedido de qualquer particular interessado.
Por fim, o legislador quer introduzir aqui uma novidade quanto à competência para declaração de ilegalidade. Vem no nº4 impor ao MP que “recorra sempre da declaração de ilegalidade do Tribunal de primeira instância”. Com isto aumenta os poderes dos particulares em relação ao regime actualmente em vigor mas faz depender a sentença definitiva de apreciação pelo Tribunal da Relação. Assim sendo, em qualquer caso previsto no nº1, o Tribunal da Relação vai ser chamado a decidir da ilegalidade, quase que, diria, numa função de ratificação da sentença do Tribunal de primeira instância.
Concluímos que, no geral, o regime que se propõe aprovar vem promover os direitos dos particulares, sendo mais favorável do que o regime actualmente em vigor. Também acaba com as dicotomias das posições entre os vários intervenientes (MP, actor público e particular).
Por outro lado, aumentará o tempo de espera até que o particular obtenha uma decisão definitiva, uma vez que haverá sempre, obrigatoriamente, recurso da decisão que lhe seja favorável.
Eventualmente, ao tornar o regime mais abrangente quer para os particulares, quer para o actor popular, o legislador quis limitar e assegurar a solenidade das decisões introduzindo a necessidade do Ministério Público interpor recurso.
Carolina Melo
140110086
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