domingo, 23 de novembro de 2014

Dualidade ou UNIDADE?

Existiram dois momentos na passagem de uma noção processual para a substantivização do conceito de CONTRATO PÚBLICO:

-Os tribunais administrativos, enquanto órgãos administrativos especiais, ao tempo da infância difícil do contencioso administrativo, tinham por missão defender a Administração, isentando do controlo judicial os respectivos actos de poder público;
-Num segundo momento, poder-se-ia afirmar que a dualidade esquizofrénica da contratação administrativa que começara por  ter razões de ordem prática e tinha consequências somente processuais, deixa de ser apenas uma realidade recalcada ao nível do inconsciente para passar também a manifestar-se de modo consciente.

Em consequência desta evolução surge uma doutrina da contratação administrativa marcada pela fragmentação. Por um lado, procura-se justificar a divisão esquizofrénica do universo contratual, distinguindo CONTRATOS ADMINISTRATIVOS (exercício de privilégios exorbitantes ou de poderes especiais da Administração, que exigiam um específico regime jurídico) dos CONTRATOS DE DIREITO PRIVADO DA ADMINISTRAÇÃO (contratos em que as autoridades administrativas, atuavam como simples privado, pelo que o regime jurídico deveria ser identifico ao de qualquer outro contrato).

O contrato administrativo é, pois, um conceito bifacial uma vez que consegue ser, ao mesmo tempo, bilateral e unilateral. Eis a dúvida que se coloca e que pretendo esclarecer:

A separação esquizofrénica entre contratos administrativos e contratos de direito privado da Administração tinha consequências de natureza substantiva e processual. Do ponto de vista substantivo, considerava-se dever existir um regime jurídico especial para os contratos administrativos e outro comum para os demais contratos em que interviessem a Administração.

Os contratos administrativos distinguir-se-iam dos demais em razão de critérios autoritários daí decorrendo poderes especiais para a Administração, quer ao nível da interpretação do contrato, quer ao nível da respectiva execução. Do ponto de vista contencioso, a natureza do contrato administrativo implicava que os litígios relativos à sua interpretação, validade ou execução fossem da competência dos tribunais administrativos, enquanto que os contratos de direito privado da Administração eram da competência dos tribunais comuns.

De acordo com a Prof. Maria João Estorninho, enquanto modo normal de exercício da função, ao lado de uma multiplicidade de outras formas de actuação, vai dar origem a um movimento de sentido convergente, através do qual se tem vindo a reconhecer que, nem o contrato administrativo é tão exorbitante quanto isso, nem os contratos privados da Administração são exactamente iguais aos celebrados entre particulares, o que demonstra uma eventual aproximação entre todos os contratos da administração.

Esta nova tendência no sentido da UNIDADE de tratamento de toda a atividade contratual da Administração pública é, por um lado ação da doutrina e por outro lado, do Direito Europeu.

Desde muito cedo, se entendeu que a construção europeia implicava a existência de regras comuns em matéria de contratação administrativa. Daqui resultou o surgimento de múltiplas fontes de Direito Administrativo Europeu.

A criação de um  Direito Europeu de Contratação Pública estabelece que as bases gerais dos contratos da função administrativa em todos os países da Europa. Trata-se de um regime jurídico COMUM europeu, estabelecido para certos tipos de contratos, em razão da sua importância para o exercício da função administrativa e independentemente da respetiva qualificação nacional ou para determinados sectores da atividade, em razão dos fins prosseguidos de modo a poder valer tanto para os ordenamentos dos países de matriz francesa, como os da variante germânica, como ainda para os da “common law”. O que explica que a matéria da contratação pública europeia seja delimitada, sobretudo, com base em critérios materiais, tanto os relativos à natureza da actividade, como os respeitantes aos fins prosseguidos.

Para além da “integração vertical”, decorrente da aplicabilidade das fontes comunitárias nas ordens jurídicas nacionais de cada um dos Estados europeus, verifica-se ainda, neste domínio, um fenómeno de “integração horizontal”, que consiste na convergência das administrações e das instituições nacionais, pois, a partir do momento em que elas têm o dever de se harmonizar, isso faz com que tendam também a convergir para um determinado modelo, daqui resultando que o direito dos contratos das administrações públicas dos diferentes Estados tenda a convergir para um modelo unitário  como vem afirmar Cassese.
Assim podemos concluir que cada vez mais há uma tendência para a unidade dos contratos que correspondem ao exercício da função administrativa, quer do ponto de vista do direito substantivo, como do procedimento ou do processo.

Em Portugal, o fenómeno da europeização tem sido um importante eixo da transformação do Direito Administrativo português da contratação pública. O movimento unificador da contratação pública ditado pelo Direito Europeu, manifestou-se primeiro na legislação relativa aos procedimentos pré-contratuais e, depois, na legislação do contencioso administrativo, que eliminou, para efeitos processuais, a categoria dos contratos administrativos (artigo 4º, nº1 alínea b), e) e f) do CPTA).

Inês Casanova de Almeida



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