O contrato
administrativo surgiu como uma realidade esquizofrénica que só foi afastada
pelo Código da Contratação Pública em 2008.
Inicialmente,
não se admitia a figura do contrato administrativo, porque se a Administração
podia impor a sua vontade, não seria concebível que pudesse contratar. OTTO MAYER defendia
que era um contrassenso inadmissível.
No entanto, no
séc. XIX, a Administração começa a celebrar contratos próximos dos que
conhecemos, que eram sobretudo contratos de concessão de obras públicas. Com o
advento do Estado social, com a passagem da “farda única para o pronto-a-vestir”, deixou de haver uma actuação
actocêntrica da Administração, que passou a actuar também por outros meios,
como os regulamentos e contratos.
Nos sistemas
de tipo francês (Espanha, Portugal, Itália e França) começou por haver uma realidade
esquizofrénica. No séc. XIX, início do séc. XX, a ideia de que havia
necessidade de contratar levou a que se estendesse o regime jurídico processual
do acto ao contrato, mas esta realidade processual acabou por se transformar em
substantiva: começou a defender-se que há determinados contratos que devem
estar submetidos ao Direito Administrativo e ao Contencioso Administrativo
(contratos administrativos) e outros que se podiam modelar pelo Direito Civil
(contratos privados). Esta ideia partiu de HAURIOU que entendia que os
contratos também eram privilégios exorbitantes, o que não é defensável e é
contraditório, porque se o contrato é bilateral como é que podem corresponder a
privilégios de autoridade? No entanto, a doutrina insistia nesta contradição e
procurava argumentar dizendo que, por exemplo, há um poder exorbitante de pôr
fim ao contrato em circunstâncias excepcionais (rebus sic stantibus), um poder de punir o particular se ele não
cumprir o contrato, … O problema deste argumento é que estes poderes existem
também no Direito Privado, nada têm que ver especificamente com o poder
administrativo.
As
preocupações tradicionais em matéria de contratos públicos eram no sentido de
garantir os chamados princípios constitucionais da actividade administrativa (prossecução
de interesses públicos, legalidade, imparcialidade administrativa, ...) e
quanto às regras de execução do contrato, discutia-se se uma vez celebrado o
contrato, sendo este para cumprir, como é que uma entidade pública podia ficar “amarrada”
ao contrato que celebrou, se a dada altura as vicissitudes mudam e interesse
público se altera? Surge assim uma lógica de a Administração poder adaptar o
contrato. Isto surgiu no início do séc. XX, a propósito de um caso de
iluminação que chegou ao Conseil d’État:
havia um contrato de concessão pela Câmara de Bordéus que tinha por objecto a iluminação
pública e o prazo era de 99 anos, a dada altura descobre-se a energia eléctrica
e a iluminação em causa era a gás. A Câmara dirige-se ao concessionário e diz
que pretende mudar para energia eléctrica, o concessionário investiu do seu
bolso e cobra tarifas e o que a Câmara vem dizer é que se tem de adaptar a
novas circunstâncias, ou seja, que o interesse público é mutável e o contraente
é colaborador e portanto tem de se sujeitar. Reconheceu-se assim um poder de modificação
unilateral das prestações.
Nos anos 70, começa
a contestar-se esta realidade esquizofrénica. Os poderes unilaterais não
resultam de privilégios da Administração, mas antes da lei (os contratos estão
sujeitos à lei, tal como os actos e regulamentos). Paradigma disso é o facto
de, em Portugal, ter sido regulada a empreitada de obras públicas,
consagrando-se regras sobre a revogação que não estavam contempladas no Direito
Civil, o que fazia com que os particulares nos contratos de empreitada que
celebravam, recorressem ao regime da empreitada de obras públicas para integrar
os pontos omissos do Direito Civil, o que na prática derruba a ideia de
exorbitância.
A Professora MARIA JOÃO
ESTORNINHO vem defender que os contratos públicos nada têm de
exorbitante e os contratos ditos privados não o eram, porque na verdade
continuavam a ser o exercício da função administrativa.
Assim, o
paradigma começa a alterar-se, sobretudo por influência do Direito Europeu que
vem regular de forma diferente a realidade da contratação pública, pretendendo
que esta seja semelhante em todos os Estados-membros, de forma a permitir a
livre-concorrência. Deste modo, foi criado um regime comum (alheio à realidade
esquizofrénica para poder abranger o modelo anglo-saxónico) através de
directivas dos anos 90 e de 2004 que foram transpostas pelo Código da
Contratação Pública de 2008. A última directiva de 2004 introduziu um regime
comum de contratação em todos os Estados-membros.
Como tal, no Direito português em 1998 foi criado um
novo meio processual urgente, o contencioso pré-contratual. Na Reforma de 2004,
veio adoptar-se uma noção de contrato ampla, que abrange todas as situações
contratuais (incluindo os ditos contratos privados) e não só os contratos
administrativos, que passam a ser da competência dos tribunais (art.º 4º do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
O Código da contratação pública de 2008 veio superar
o trauma de infância. Criou um regime jurídico comum a todos os contratos que
correspondam ao exercício da função administrativa e foi mais longe do que as
directivas, abrangendo os contratos de concessão de serviços públicos. Contudo,
mantém um capítulo que regula os “contratos administrativos”, o que revela um
problema de nomenclatura, porque esta expressão corresponde à lógica esquizofrénica
que já foi eliminada.
Inês Chorro - 140111062
Inês Chorro - 140111062
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