quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A INFÂNCIA TRAUMÁTICA DA CONTRATAÇÃO

O contrato administrativo surgiu como uma realidade esquizofrénica que só foi afastada pelo Código da Contratação Pública em 2008.
Inicialmente, não se admitia a figura do contrato administrativo, porque se a Administração podia impor a sua vontade, não seria concebível que pudesse contratar. OTTO MAYER defendia que era um contrassenso inadmissível.
No entanto, no séc. XIX, a Administração começa a celebrar contratos próximos dos que conhecemos, que eram sobretudo contratos de concessão de obras públicas. Com o advento do Estado social, com a passagem da “farda única para o pronto-a-vestir”, deixou de haver uma actuação actocêntrica da Administração, que passou a actuar também por outros meios, como os regulamentos e contratos.
Nos sistemas de tipo francês (Espanha, Portugal, Itália e França) começou por haver uma realidade esquizofrénica. No séc. XIX, início do séc. XX, a ideia de que havia necessidade de contratar levou a que se estendesse o regime jurídico processual do acto ao contrato, mas esta realidade processual acabou por se transformar em substantiva: começou a defender-se que há determinados contratos que devem estar submetidos ao Direito Administrativo e ao Contencioso Administrativo (contratos administrativos) e outros que se podiam modelar pelo Direito Civil (contratos privados). Esta ideia partiu de HAURIOU que entendia que os contratos também eram privilégios exorbitantes, o que não é defensável e é contraditório, porque se o contrato é bilateral como é que podem corresponder a privilégios de autoridade? No entanto, a doutrina insistia nesta contradição e procurava argumentar dizendo que, por exemplo, há um poder exorbitante de pôr fim ao contrato em circunstâncias excepcionais (rebus sic stantibus), um poder de punir o particular se ele não cumprir o contrato, … O problema deste argumento é que estes poderes existem também no Direito Privado, nada têm que ver especificamente com o poder administrativo.
As preocupações tradicionais em matéria de contratos públicos eram no sentido de garantir os chamados princípios constitucionais da actividade administrativa (prossecução de interesses públicos, legalidade, imparcialidade administrativa, ...) e quanto às regras de execução do contrato, discutia-se se uma vez celebrado o contrato, sendo este para cumprir, como é que uma entidade pública podia ficar “amarrada” ao contrato que celebrou, se a dada altura as vicissitudes mudam e interesse público se altera? Surge assim uma lógica de a Administração poder adaptar o contrato. Isto surgiu no início do séc. XX, a propósito de um caso de iluminação que chegou ao Conseil d’État: havia um contrato de concessão pela Câmara de Bordéus que tinha por objecto a iluminação pública e o prazo era de 99 anos, a dada altura descobre-se a energia eléctrica e a iluminação em causa era a gás. A Câmara dirige-se ao concessionário e diz que pretende mudar para energia eléctrica, o concessionário investiu do seu bolso e cobra tarifas e o que a Câmara vem dizer é que se tem de adaptar a novas circunstâncias, ou seja, que o interesse público é mutável e o contraente é colaborador e portanto tem de se sujeitar. Reconheceu-se assim um poder de modificação unilateral das prestações.
Nos anos 70, começa a contestar-se esta realidade esquizofrénica. Os poderes unilaterais não resultam de privilégios da Administração, mas antes da lei (os contratos estão sujeitos à lei, tal como os actos e regulamentos). Paradigma disso é o facto de, em Portugal, ter sido regulada a empreitada de obras públicas, consagrando-se regras sobre a revogação que não estavam contempladas no Direito Civil, o que fazia com que os particulares nos contratos de empreitada que celebravam, recorressem ao regime da empreitada de obras públicas para integrar os pontos omissos do Direito Civil, o que na prática derruba a ideia de exorbitância.
A Professora MARIA JOÃO ESTORNINHO vem defender que os contratos públicos nada têm de exorbitante e os contratos ditos privados não o eram, porque na verdade continuavam a ser o exercício da função administrativa.
Assim, o paradigma começa a alterar-se, sobretudo por influência do Direito Europeu que vem regular de forma diferente a realidade da contratação pública, pretendendo que esta seja semelhante em todos os Estados-membros, de forma a permitir a livre-concorrência. Deste modo, foi criado um regime comum (alheio à realidade esquizofrénica para poder abranger o modelo anglo-saxónico) através de directivas dos anos 90 e de 2004 que foram transpostas pelo Código da Contratação Pública de 2008. A última directiva de 2004 introduziu um regime comum de contratação em todos os Estados-membros.
Como tal, no Direito português em 1998 foi criado um novo meio processual urgente, o contencioso pré-contratual. Na Reforma de 2004, veio adoptar-se uma noção de contrato ampla, que abrange todas as situações contratuais (incluindo os ditos contratos privados) e não só os contratos administrativos, que passam a ser da competência dos tribunais (art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).  

O Código da contratação pública de 2008 veio superar o trauma de infância. Criou um regime jurídico comum a todos os contratos que correspondam ao exercício da função administrativa e foi mais longe do que as directivas, abrangendo os contratos de concessão de serviços públicos. Contudo, mantém um capítulo que regula os “contratos administrativos”, o que revela um problema de nomenclatura, porque esta expressão corresponde à lógica esquizofrénica que já foi eliminada.

Inês Chorro - 140111062 

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